Capítulo I

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  Apanhei minha bolsa, atravessando a alça de couro marrom em frente ao corpo, pegando também alguns polígrafos sobre Kierkegaard e Nietzsche, uns poucos rascunhos sobre Übermensch e Begrebet Angest, também algumas das minhas melhores dissertações sobre "Camus e La Résistance" e "A Anomia de Durkheim sobre o Vazio Existencial de Nietzsche". Conferi se estava tudo bem editado e organizado, quase sentando novamente para reler meu rascunho sobre além-homem, mas me detive ao notar que começava a chover, olhando pela clarabóia no teto de meu pequeno apartamento.
  Conferi meu aspecto em um espelho minúsculo na parede, que descascava em uma tinta azul, vendo meu rosto abatido da noite mal dormida. Eu estava com olheiras, e pálido, parecia doente, talvez estivesse, mas nada que um bom café não melhorasse na hora. Devia ir no médico, talvez fazer um check-up, ou tomar algumas vitaminas, quem sabe. Minha roupa estava amarrotada. Um moletom de lã, de uma viagem que fizera à Noruega, azul escuro com padrões de linhas na altura do peito, na bainha e nas mangas, todos na cor branca e amarelo palha. Era bonito, e me trazia lembranças de uma das minhas melhores épocas da faculdade. Uma calça de moletom cinza, opaca e desbotada. Tênis surrado e sujo, com alguns riscos coloridos que fiz em um surto criativo que acabara errado.
  Me aproximei da janela, analisando os prédios, de silhuetas elegantes e muitas construções antigas ainda mantidas, como a minha. O apartamento ficava no terraço de um prédio com mais de cem anos, conservado e restaurado. Ao longe, a ponta aguda da Torre Eiffel despontava no céu nublado e de nuvens carregadas. Me apressei, colocando um sobretudo preto e olhando um tanto agoniado para o caos no apartamento de apenas dois cômodos, um quarto com banheiro e uma espécie de sala/cozinha. Empurrei a porta, fechando-a atrás de mim com um chute. Desci os degraus de metal o mais rápido que podia, não querendo pegar chuva no caminho. Passei pelo meu vizinho, Leon, que hoje parecia meio ranzinza, mas que tratei de cumprimentar com um sorriso de canto. Também encontrei Amèlie, que descia o lixo e me acompanhou com os olhos até a porta, acenando e sorrindo com aqueles lábios miúdos. Retribuí, correndo para fora do prédio, me vendo na rua cinzenta e apinhada de gente. Olhei para os lados, avistando multidões em ambos, pessoas tão apressadas quanto eu, todas imersas em suas únicas e próprias preocupações mundanas.
  Nem fiz questão de procurar por um táxi, já que a rua era apenas um estreito, onde apenas pessoas transitavam, então eu precisaria caminhar até a próxima rua, paralela ao um dos canais oriundos do Sena. Apertei a alça de couro em frente ao peito, franzindo o cenho, adentrei a multidão, sumindo em um mundo de frustrações, trabalhadores e sobretudos, ocupações banais da vida humana, que se encaminhavam para nada em seu último suspiro, já que o rendimento no mesmo não determinava quem caía no sono final. Era apenas mais uma forma de ocupar o tempo, aguardar pelo inevitável e criar sua própria ilusão de um propósito.

***

  A rua próxima do canal era menos movimentada. Caminhava junto da grade, vendo as águas geladas e cinzentas correrem lentas. Conseguia ouvir o som de sinos, algumas ruas dali, ecoando em três badaladas, vazando da torre mais alta de Notre-Dame. Conseguia visualizar os arcos da parte de trás da igreja, cinza escuro em pedra. Era linda vista de qualquer distância, pensei.
  Avistei o táxi, acenando um pouco frenético. O motorista avistou minha mão se projetando para o meio da rua, encostando próximo do meio-fio. Adentrei o veículo, acenando com a cabeça para o homem atrás do volante. Ele questionou o destino:
  - Para onde?
  - Panthéon Sorbonne- Lhe respondi, sentindo a euforia só de pensar na faculdade de Paris, formigando por debaixo da pele. Alegria pura.
  Ele olhou pelo retrovisor.
  - Universitário?- Questionou. Assenti- Parabéns, está em uma das melhores, garoto.
  Sorri, retribuindo o elogio.
  - Obrigado- Disse- Vou lá para uma palestra.
  - Deve ser importante- Comentou, arrancando com o carro.
  - Sim, muito importante- Comentei- Posso mudar minha vida- Finalizei, encostando a nuca no banco e deixando os olhos varrerem a paisagem cinzenta.
  Imerso no cenário francês, senti o carro avançar pela Quai de la Tournelle, vendo em frente a Pont de la Tournelle e quase sentindo meu corpo relaxar.


***

Assim se inicia

Roses; [joshler]Onde histórias criam vida. Descubra agora