Pequena venda de uma cidadezinha de
veraneio do litoral baiano. Há uma grande árvore,
um coreto e uma venda. Sob o sol, sentado no chão,
Chico Moleza dedilha molemente o violão. Em frente
à vendola, Seu Dermeval remenda uma rede de
pescar. É um mulato gordo e bonachão, de idade já
avançada.
Passa-se meio minuto. Entram Mestre
Ambrósio e Zelão carregando um defunto numa
rede. O enterro é acompanhado por uma beata,
velhinha, enrugada como um jenipapo, e um
cachorro, um magro vira-lata, que vem amarrado à
rede. Mestre Ambrósio é um velho pescador de tez
moreno-avermelhada, curtido do sol. Musculatura
batida, chapelão de palha, calças de algodão
branco, sua figura infunde respeito. Zelão é um
negro reluzente, mais moço do que Mestre
Ambrósio, pescador como ele. Traz vários amuletos
no pescoço e um bom humor constante. A velha reza
baixinho enquanto os dois pescadores avançam até o
centro da cena, com o passo não muito firme, e aí
depositam o féretro. Moleza pára de tocar e
descobre-se, em sinal de respeito. O apelido o define
bem: gestos lentos, descansados, fala mole, é ele um
retrato vivo da cidade, onde a vida passa sem pressa
.
MESTRE AMBRÓSIO – Vamos molhar um pouco a
goela na venda de seu Dermeval, Zelão.
ZELÃO – É bom.
DERMEVAL – (Indicando o Defunto) Mestre Leonel?
MESTRE AMBRÓSIO – É. Embarcou, coitado.
DERMEVAL – (Dirige-se à venda) No mar?
MESTRE AMBRÓSIO – Qui-o-quê. Janaína quis saber
dele não. Esticou em terra mesmo.
ZELÃO – É de hoje que ele não entrava num saveiro.
Mal agüentava com um caniço. Quase cem anos no
costado, sabe como é.
MESTRE AMBRÓSIO – Tava que nem saveiro velho,
cheio de ostra pelo casco, fazendo água por todo o
lado. Precisava mesmo ir pro estaleiro.
DERMEVAL – Também entornava um bocado.
MESTRE AMBRÓSIO – Pra esquece. Sabe o que é um
mestre de saveiro respeitado como ele foi ao fim da
vida tendo quase que pedir esmolas?
ZELÃO – A gente sempre dava para ele as sobras da
pescaria: pititinga, chicharro, peixe miúdo.
MESTRE AMBRÓSIO – Morreu sem ter dinheiro nem
pro caixão.
DERMEVAL – Tinha parente não?
MESTRE AMBRÓSIO – Ter tinha. Botou um bocado
de filho no mundo, o falecido, que a terra lhe seja
leve. Mas tudo levantou âncora. Uns foram pra
Salvador, outros pra São Paulo. Por aqui só aparecia
mesmo de vez em quando, a filha mais nova. Uma
que caiu na vida.
ZELÃO – E que pedaço de mau caminho, seu mano!
Tenho uma sede nela!
MESTRE AMBRÓSIO – Oxente, Zelão, respeita o
defunto!
ZELÃO – Que o finado me desculpe, mas é mesmo. E
um dia eu ainda pesco um cação de três metros, boto
o dinheiro no bolso e vou me afogar naquelas águas.
(Ri)
MESTRE AMBRÓSIO – Dá mais um porongo.
(Dermeval enche os dois copos. Eles bebem de um
trago. Dermeval torna a enchê-los. Enquanto isso,
Moleza levanta-se com a sua característica lentidão,
aproxima-se do defunto, descobre-o)
MOLEZA – Coisa besta é a vida; ontem tava vivo,
hoje tá morto. Que merda!
ZELÃO – Vem tomar um mata-bicho, Moleza.
MOLEZA – (Vai à venda) Como foi?
(Dermeval serve uma cachaça)
MESTRE AMBRÓSIO – A gente voltava da pescaria,
hoje de manhã, eu mais Zelão, encontramos ele
estendido na praia, o cachorro lambendo a cara.
MOLEZA – Lambendo a cara, Mestre Ambrósio?
MESTRE AMBRÓSIO – E chorava. Chorava de correr
lágrima.
MOLEZA – O cachorro?
MESTRE AMBRÓSIO – Oxente, gente, já viu defunto
chorar?
MOLEZA – Nem defunto, nem cachorro.
MESTRE AMBRÓSIO – Quero que esta luz me cegue,
se não é verdade.
ZELÃO – Verdade sim. O bicho parecia saber que o
velho tinha espichado. Chorava como gente.
MESTRE AMBRÓSIO – De cortar o coração, seu
Moleza.
DERMEVAL – E a velha?
MESTRE AMBRÓSIO – Sei lá. Nós viemos, ela veio
atrás;
DERMEVAL – Será que ela e o velho?
(Zelão solta uma gargalhada imoral)
MESTRE AMBRÓSIO – Capaz. Quando era moço, de
saia mesmo mestre Leonel só respeitava padre e
santo de andor. (Todos riem) Vamos se chegando,
Zelão, que ainda temos três léguas pela proa.
DERMEVAL – Três léguas. Quando chegarem lá, em
vez de um defunto vão ter dois para enterrar.
MESTRE AMBRÓSIO – Isto é uma terra infeliz, que
nem cemitério tem. Pra se enterrar um defunto é
preciso ir a outra cidade.
MOLEZA – Não era melhor jogar o corpo no mar?
MESTRE AMBRÓSIO – Pra quê? Pra vir dar na praia
de manhã?
MOLEZA – Jogava bem longe, em alto-mar. Fazia de
conta que tinha morrido afogado. Mestre Leonel, que
era pescador, ia se sentir até melhor acomodado.
MESTRE AMBRÓSIO – Vinha dar na praia do mesmo
jeito. Não vê que se dona Janaína não quis ele
quando era moço, não ia querer agora? Janaína gosta
é de gente nova, sadia.
DERMEVAL – Falar em Janaína, sabe do caso do
sujeito que se encontrou com a mãe-d’água no meio
do mar.
ZELÃO – Sei não. Como é?
DERMEVAL – Quando ele viu aquele mulherão pela
frente, toda nua, mulher do umbigo pra cima e peixe
do umbigo pra cima e peixe do umbigo pra baixo,
perguntou: “Siá dona será que vosmicê não tem uma
irmã que seja ao contrário?”
Todos riem exageradamente. Estão já bastante
bêbados. Moleza dedilha o violão.
MOLEZA – (Canta) Dona Janaína princesa que é
Filha das águas do Abaité
Dona Janaína i nanã ê
MESTRE AMBRÓSIO, DERMEVAL E ZELÃO – (Coro)
I nanã ê.
I nanã ê.
(Odorico entra, suando por todos os poros. Não é
propriamente um belo homem, mas não se lhe pode
negar certo magnetismo pessoa. Demagogo, bem-
falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende,
sua figura impressiona e convence. Veste um terno
branco, chapéu panamá)
ODORICO – Ah, lá estão! Ainda cheguei a tempo.
DERMEVAL – Bom-dia, Coronel Odorico.
ODORICO – Bom-dia, minha gente.
(Ao verem Odorico, Mestre Ambrósio e Zelão
deixam o balcão. Moleza pára de tocar)
MESTRE AMBRÓSIO – Bom-dia, Coronel. Fizemos
uma parada rápida, pra molhar a goela. Vamos ter
que gramar três léguas.
ODORICO – Três léguas. Pra se enterrar um defunto é
preciso andar três léguas.
DERMEVAL – Um vexame!
MOLEZA – Vexame pro defunto: ter que viajar tanto
depois de morto.
ODORICO – É uma humilhação para a cidade, uma
humilhação para todos nós, que aqui nascemos e que
aqui não podemos ser enterrados.
MOLEZA – Muito bem dito.
Entram Dorotéa e Judicéa. A primeira é professora
do grupo escolar, de maneiras pouco femininas, com
qualidades evidentes de liderança. Paradoxalmente,
Odorico exerce sobre ela terrível fascínio. Também
sobre Juju esse fascínio se faz sentir. E isso poderia
ser explicado por diferentes tipos de frustração.
ODORICO – Quem ama a sua terra deseja nela
descansar. Aqui, nesta cidade infeliz, ninguém pode
realizar esse sonho, ninguém pode dormir o sono
eterno no seio da terra em que nasceu. Isso está
direito, minha gente?
TODOS – Está não!
ODORICO – Merecem os nossos mortos esse
tratamento?
DOROTÉA E JUJU – Merecem não.
(Entram Dulcinéa e Dirceu Borboleta, este com uma
vara de caçar borboletas e uma sacola. Odorico
exerce sobre ela o mesmo fascínio que sobre suas
irmãs Judicéa e Dorotéa. Quanto a ele, é um tipo
fisicamente frágil, de óculos, com ar desligado)
ODORICO – (Já passando a um tom de discurso)
Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos
neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui
terminou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora,
em estado de defuntice compulsória, é obrigado a
emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra
estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele
dormir tranqüilamente o sono eterno? Poderá sua
alma alcançar a paz?
TODOS – Não. Claro que não.
Populares são atraídos pelo discurso de Odorico,que se empolga, sobe ao coreto.
ODORICO – Meus conterrâneos: vim de branco para
ser mais claro. Esta cidade precisa ter um cemitério.
TODOS – Muito bem! Apoiado!
DOROTÉA – Uma cidade que não respeita seus
mortos não pode ser respeitada pelos vivos!
ODORICO – Diz muito bem Dona Dorotéa Cajazeira,
dedicada professora do nosso grupo escolar. É
incrível que esta cidade, orgulho do nosso estado
pela beleza de sua paisagem, por seu clima
privilegiado, por sua água radioativa, pelo seu azeite-
de-dendê, que é o melhor do mundo, até hoje ainda
não tenha onde enterrar seus mortos. Esse prefeito
que aí está...
DOROTÉA, DULCINÉA E JUJU – (Vaiam) Uuuuuuuu!
ODORICO – Esse prefeito que aí está, que fez até
hoje para satisfazer o maior anseio do povo desta
terra?
DIRCEU – Só pensa em construir hotéis para
veranistas!
DULCINÉA – Engarrafar água para vender aos
veranistas!
ODORICO – Tudo para veranistas, pessoas que vêm
aqui passar um mês ou dois e voltam para suas
terras, onde, com toda certeza, não falta um
cemitério. Mas aqui também haverá! Aqui também
haverá um cemitério!
JUJU – (Grita Histericamente) Queremos o nosso
cemitério!
DOROTÉA, JUJU, DIRCEU E DULCINÉA – Queremos
o cemitério! Queremos o cemitério!
ODORICO – E haveremos de tê-los. Cidadãos
sucupiranos! Se eleito nas próximas eleições, meu
primeiro ato como prefeito será ordenar a construção
imediata do cemitério municipal.
TODOS – (Aplausos) Muito bem! Muito bem!
(Uma faixa surge no meio do povo)
VOTE NUM HOMEM SÉRIO
E GANHE SEU CEMITÉRIO
ODORICO – Bom governante, minha gente, é aquele
que governa com o pé no presente e o olho no futuro.
E o futuro de todos nós é o campo-santo.
MOLEZA – O campo-santo.
DULCINÉA – Que homem!
DOROTÉA – (Repreende-a) Du, tenha modos!
ODORICO – É preciso garantir o depois-de-amanhã,
para ter paz e tranqüilidade no agora. Quem é que
pode viver em paz mormentemente sabendo que,
depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três
léguas pra ser enterrado?
MOLEZA – É mesmo um pecado!
ODORICO – Uma vergonha! Mas eu, Odorico
Paraguaçu, vou acabar com essa vergonha.
MESTRE AMBRÓSIO – Seu doutor me disculpe, mas
desde pequenininho que eu escuto falar nessa
história de cemitério. E a coisa fica sempre na
conversa. Todo mundo acha que deve fazer, mas
ninguém faz.
ZELÃO – Lá isso é.
(Entra Neco Pedreira. É o dono do jornaleco da
cidade, A Trombeta. Jovem combativo, algo
esclarecido, afora uma certa dose de charlatanismo,
é um indivíduo positivo, um pouco acima da
mentalidade da cidade. E a consciência disso lhe
produz certa frustração)
ODORICO – Mas eu vou fazer. Os que votaram em
mim para vereador sabem que cumpro o que
prometo. Prometi acabar com o futebol no largo da
Igreja e acabei. Prometi acabar com o namorismo e o
sem-vergonhismo atrás do Forte e acabai. Agora
prometo acabar com essa humilhação para nossa
cidade, que é ter que pedir a outro município licença
pra enterrar lá quem morre aqui. E vou cumprir.
(Neco Pedreira disfarçadamente acende um
“espanta-moleque” e atira no meio da praça. As
mulheres gritam, histericamente. O povo corre)
DOROTÉA – É ele! Não podia ser outro!
JUJU – Neco Pedreira!
DULCINÉA – Cafajeste!
NECO – Quem morreu fedeu, Odorico.
JUJU – Minha Nossa Senhora, que heresia!
DOROTÉA – Com certeza vai escrever isso na sua
imunda gazeta.
ODORICO – Eu sei que há muita gente que não
respeita os mortos, nem acredita em deus. Não é para
esses ateítas despenitentes que vamos construir o
nosso cemitério.
NECO – Muito obrigado. Espero que você seja o
primeiro a fazer uso dele.
ODORICO – (Para os pescadores) Vamos seguir com
o enterro.
MESTRE AMBRÓSIO – Vamos lá, Zelão. Pega na
proa que eu vou no leme.(Zelão e Ambrósio voltam a carregar o defunto)
MESTRE AMBRÓSIO – Tava pesado assim quando a
gente veio, Zelão?
ZELÃO – Tava não. Mestre Ambrósio.
MESTRE AMBRÓSIO – Então o finado engordou.
ZELÃO – Acho que sim.
MOLEZA – Diz que surra de chicote é bom: a alma
sai e o defunto fica mais leve.
ZELÃO – Também já ouvi dizer.
MESTRE AMBRÓSIO – Vamos indo. Na estrada a
gente arranja um cipó e dá um chá de vara nele.
DIRCEU – Você vai, Du?
DULCINÉA – Claro. Você não percebe que é
importante, Dirceu? Minhas irmãs também vão.
DIRCEU – Eu vou pra casa.
DULCINÉA – Fazer o que?
DIRCEU – Deixei as borboletas secando na janela,
tenho medo dos gatos...
(Dulcinéa faz uma cara de fastio e une-se ao grupo
que vai acompanhar o enterro.
O enterro se movimenta. O defunto vai à frente,
ziguezagueando em sua rede, por mais esforço que
façam Zelão e Ambrósio para caminhar em linha
reta. O cão segue, amarrado à rede. E, mais atrás, a
Velha, Odorico, Dorotéa, Juju e Moleza, que tira
acordes no violão)
VELHA – Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é
convosco, bendita sois entre as mulheres, bendito é o
fruto do vosso ventre, Jesus.
OS ACOMPANHANTES – Santa Maria, mãe de Deus,
rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa
morte, amém. (Saem)
DERMEVAL – Se ele prometer fazer o cemitério aqui
em frente da venda, meu voto é dele.
DIRCEU – Qual seu interesse nisso?
DERMEVAL – Ora, seu Dirceu, gente de velório bebe
muito. Pegou muita borboleta hoje?
DIRCEU – Só esta. (Mostra) Veja.
DERMEVAL – É bonita.
DIRCEU – É rara. Raríssima. É uma Morpho
Deidámea. (Sai)
DERMEVAL – Homem que vive caçando borboleta, a
mulher acaba virando mariposa... (Ri e volta a
remendar a sua rede)
NECO – (Vai à venda) Seu Dermeval, me bota aí um
engasga-gato.
DERMEVAL – (Larga a rede, vai servir a cachaça)
Como vai a gazeta, Dr. Neco.
NECO – Mal, seu Dermeval, mal. Numa cidade
atrasada, onde não há crimes, desastres, roubos, onde
nem mesmo as mulheres corneiam os maridos, como
é que pode haver imprensa?
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O Bem Amado
Humor"O Bem-Amado" é a divertida peça de Dias Gomes que se transformou em novela (a primeira a cores do país), seriado e filme. Nela é retratado o típico político astuto que não mede esforços para atingir seus objetivos. E o que Odorico Paraguaçu, novo p...