SEGUNDO QUADRO

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Uma sala da prefeitura. O ambiente é modesto.
Durante a mutação, ouve-se um dobrado e vivas a
Odorico, “viva o prefeito!, etc. Estão em cena
Dorotéa, Juju, Dirceu, Dulcinéa, Vigário e Odorico.
Este ultimo, à janela, discursa.
ODORICO – Povo sucupirano! Agoramente já
investido no cargo de Prefeito, aqui estou para
receber a confirmação, ratificação, a autenticação e
por que não dizer a sagração do povo que me elegeu.
(Aplausos vêm de fora.)
ODORICO – Eu prometi que o meu primeiro ato
como prefeito seria ordenar a construção do
cemitério.
(Aplausos, aos quais se incorporam as personagens
em cena.)
ODORICO – (Continuando o discurso) Botando de
lado os entretantos e partindo pros finalmente, é uma
alegria poder anunciar que prafrentemente vocês já
poderão morrer descansados, tranqüilos e
desconstrangidos, na certeza de que vão ser
sepultados aqui mesmo, nesta terra morna e cheirosa
de Sucupira. E, quem votou em mim, basta dizer isso
ao padre na hora da extrema-unção, que tem enterro
e cova de graça, conforme o prometido.
(Aplausos. Vivas. Foguetes. A banda volta a tocar.
Odorico acena para o povo sorridente, depois deixa
a janela e é imediatamente cercado pelos presentes,
que o cumprimentam.)
DOROTÉA – Parabéns. Foi ótimo o seu discurso.
JUJU – Disse o que precisava dizer.
ODORICO – Obrigado, obrigado.
DIRCEU – De um homem assim é que a gente
precisa; vai direto à questão.
DULCINÉA – Formidável.
ODORICO – Obrigado, obrigado. Conto com vocês.
DOROTÉA – Pode contar. Comigo e com minhas
irmãs. Queríamos convidar o Prefeito pra tomar um
licorzinho conosco lá em casa esta noite.
ODORICO – Licor? De que?
JUJU – De jenipapo.
ODORICO – Jenipapo é bom. Sou um jenipapista
juramentado.
DOROTÉA – Podemos esperá-lo?
ODORICO – Podem... vamos comemorar a posse com
uma jenipapação.
JUJU – (Tem um risinho histérico, que corta de
súbito ante o olhar severo de Dorotéa)
DOROTÉA – Então, até mais logo. Você vem,
Dulcinéa?
DULCINÉA – Dirceu...?
DIRCEU – Eu vou ter que ficar. Agora sou secretário
do Prefeito... Me espere em casa, bem... não demoro.
Dorotéa, Juju e Dulcinéa saem.
ODORICO – Seu Dirceu, o senhor viu todos aqueles
processos que eu pedi?
DIRCEU – Estão todos separados.
ODORICO – Então vá buscar. Vamos trabalhar.
DIRCEU – Um instante só. (Sai)
VIGÁRIO – O senhor já vai começar a trabalhar?
ODORICO – Já. Não sou homem de perder tempo. E
vou tratar de assunto de seu interesse: a construção
do cemitério.
VIGÁRIO – Sabia que o senhor não ia esquecer as
promessas feitas no eleitorado.
ODORICO – Na próxima vez que o senhor vier aqui
já quero lhe falar da inauguração. Aliás, a Igreja
devia ajudar. É uma obra cristã, e que,
entrementemente, vai render dividendos para a
paróquia. Benzimento de corpo, encomendação de
alma...
(O Vigário se esquiva.)
VIGÁRIO – Sabe, coronel... o teto da igreja está
ameaçando de vir abaixo. Vou ter que fazer umas
quermesses para arranjar dinheiro...
(Entra Dirceu, com vários processos.)
DIRCEU – Está tudo aqui. O senhor vai examinar
agora?
ODORICO – Vou. Quero saber logo se há alguma
verba para dar início à construção do cemitério.
DIRCEU – (Coloca os processos sobre a mesa) Nem
um tostão. Só déficit.
ODORICO – (Folheia os processos) Não é possível.
DIRCEU – A prefeitura tem um terreno...
ODORICO – O terreno só não resolve, é preciso
dinheiro para o muro, as alamedas, a capela.
DIRCEU – (Examinando um processo) Parece que há www.oficinadeteatro.com
um restinho de verba da água.
ODORICO – Da água?
DIRCEU – Para concertar os canos.
ODORICO – Diz isso aí?
DIRCEU – Não, aqui só fala em obras públicas de
urgência.
ODORICO – O cemitério também é uma obra pública
de urgência. É ou não é? (Irônico) De muita
urgência...
DIRCEU – Há um restinho, pouca coisa...
ODORICO – (Anima-se) Não tem importância, um
restinho com mais um restinho, já se faz um
cemiteriozinho.
DIRCEU – É da luz. Para aumentar a força.
ODORICO – Para que aumentar a força?
VIGÁRIO – A luz anda muito fraca, Coronel, quase
não se consegue ler.
ODORICO – Mas para que ler de noite? Pode-se ler
de dia. E depois, uma cidade de veraneio deve ter luz
bem fraca, para que se possa apreciar bem o luar... A
cidade é muito procurada pelos namorados... o
senhor Vigário me perdoe.
DIRCEU – Só que esse desvio de verba...
ODORICO – É para o bem do município. Tenho
certeza que Deus vai aprovar tudo.
VIGÁRIO – Quem sabe?... As intenções são boas... E
como Deus não é um burocrata...
ODORICO – Então vamos escolher o terreno.
DIRCEU – A prefeitura só tem um, mas está ocupado.
ODORICO – Ocupado? Por quem?
DIRCEU – Pelo circo.
ODORICO – Ora, o circo que se mude. Chega das
palhaçadas de antigamente. Prafrentemente, vamos
tratar de coisas sérias. Pode levar isso daqui.
(Dirceu sai com os processos)
ODORICO – Quero ver agora o que vão dizer os que
me acusavam de oportunista, de demagogista.
Quando virem os pedreiros levantando os muros,
construindo a capela, calçando as alamedas, vão ficar
com cara de Sinhá Mariquinha-cadê-o-frade.
VIGÁRIO – Quando o senhor espera inaugurar esse
cemitério?
ODORICO – Dentro de três meses, com o primeiro
enterro, que será custeado pela municipalidade.
(Surge-lhe uma idéia.) Podíamos até... Oh, não,
oferecer um prêmio não ficava bem. Mas custear os
funerais e dar uma certa pompa, isso era mais do que
justo. Banda de música, marcha fúnebre. E uma
inscrição no mausoléu também, assinalando o
pioneirismo do defunto, o primeiro a ser sepultado
em terras de Sucupira.
DULCINÉA – (Entra e se assusta com a presença do
Vigário.) Desculpe... pensei que o Prefeito estivesse
sozinho...
VIGÁRIO – Não está, mas vai ficar. O Prefeito vai me
dar licença...
ODORICO – Obrigado por sua presença, seu Vigário.
DULCINÉA – Sua benção, seu Vigário.
VIGÁRIO – Deus lhe abençoe. (Sai.)
(Dulcinéa espera o Vigário sair, está muito nervosa)
ODORICO – Você voltou...
DULCINÉA – Onde está meu marido?
ODORICO – Dirceu... está lá dentro...
DULCINÉA – Preciso muito falar com você.... Eu não
lhe disse nada... mas estava apavorada...
ODORICO – Com quê? Seu marido!...
DULCINÉA – Pior... Pensei que estivesse grávida!
Mas era rebate falso...
(Dirceu entra nesse momento e Odorico procura
disfarçar.)
ODORICO – Sinto muito, Dona Dulcinéa, mas seu
Dirceu agora é funcionário da Prefeitura, tem que
cumprir o expediente.
DIRCEU – Du... que houve? Não lhe disse pra me
esperar em casa?
DULCINÉA – Está bem... é que eu pensei...
Desculpe... (Sai.)
DIRCEU – Ela veio pedir pro senhor deixar eu sair
mais cedo?
ODORICO – É, veio... Mas o senhor compreende,
mesmo sendo seu padrinho de casamento, tenho que
botar de lado esses considerandos...
DIRCEU – Claro... É que ela, coitadinha, se sente
muito só quando não está comigo.
ODORICO – Já percebi isso... Mas muito em breve
ela não vai sentir mais essa solitude... Quando
começar a nascer os filhos...
(Dirceu faz uma pausas, constrangido.)
DIRCEU – Filhos?...
ODORICO – É... filhos. Aliás, já está em tempo...
DIRCEU – Nós não vamos ter filhos.
ODORICO – Oxente, por que?
DIRCEU – Vou lhe confessar uma coisa, Coronel...
Porque o senhor é meu padrinho... e padrinho é como um segundo pai.
ODORICO – Claro...
DIRCEU – Eu... eu sou irmão oblato... Fiz voto de
castidade.
ODORICO – Voto de castidade?! E ela sabe disso?...
Bom, tem que saber...
DIRCEU – Casamos com essa condição. De manter o
meu voto.

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