Eu e Miguel somos gémeos univitelinos. Ele é a minha cara, eu sou a cara dele. Temos apenas algumas diferenças propositais entre nós, a mais gritante de todas é a personalidade, e a minha mãe costuma dizer aos familiares e amigos que o Miguel é um pouco mais alto. Mesmo que sejam míseros dois centímetros.
Chamava-se cardiomiopatia dilatada, a doença do Miguel. Se me pedirem para explicar o que isso significa, eu não saberia dizer. Tudo que sei é que o problema está alojado no coração dele. E ele precisava de outro.
Eu não conseguia acompanhar completamente as palavas do médico. . Apenas apanhava algumas expressões que me assustaram bastante. Dilatação ventricular, miocardiopatia, e as que mais me assustaram, transplante de coração e pouco tempo de vida.
O médico olhava para nós enquanto dava explicações sobre a doença do Miguel. Eu não suportava aquele olhar. Ele tinha a derrota impregnada neles, como se dissesse que não havia mais hipótese para o meu irmão.
- É um procedimento muito complicado. Há muitos detalhes, muitos critérios....
- Mas, e se não encontrarem um coração para ele? - Clara perguntou.
Eu não olhei para ela, eu sabia a resposta a aquela pergunta. E causava-me agonia só de pensar. O médico abanou a cabeça tristemente.
- Sem um coração novo não há nenhuma hipótese de ele sobreviver.
A minha mãe desabou em lagrimas. Aquilo tudo causava-me uma revolta imensa. Não era justo! Não era!
- Bem, se encontrarmos, ele irá receber um coração de alguém que tenha...
Clara fez um som esquisito com a garganta, fazendo o médico parar de falar. Era mórbido, pensar no coração de uma pessoa morta no corpo do meu irmão... mas por outro lado, se o coração tivesse em condições seria perfeito. Seria a salvação do Miguel.
- Se não encontrarmos o coração em pelo menos uma semana, temo que...
- Uma semana? - Estrilei. - Está a dizer que se o meu irmão não tiver um coração novo em pelo menos uma semana, ele vai... ele vai...
Nunca pensei que a minha família fosse passar por uma coisa destas. O Miguel sempre foi saudável. Nunca deu sinais de ter nenhum problema.
Quando eramos pequenos era sempre eu quem se cansava primeiro em todas as brincadeiras. Ele continuava a correr e a puxar por mim. Ele sempre foi o mais atlético, o mais dinâmico e o que tinha energia para dar e vender. Não percebo como isto foi acontecer. Se me perguntassem eu diria que o meu coração é que era o fraco e não o dele!
O médico foi embora e a minha mãe voltou a cair num choro desconsolado. Deixou-se cair na cadeira e chorou até não poder mais. Eu queria poder consola-la, mas eu não estava a aguentar a minha própria dor. Clara fez isso por mim, abraçou-a, chorava também. Era difícil, era a coisa mais difícil pela qual a nossa família alguma vez tinha passado.
O Miguel tinha uma semana de vida se não encontrassem um coração para ele. Uma semana.
Não chorei, eu não conseguia. Algo não deixava. Havia uma coisa dentro de mim que não me deixava externar o que estava a sentir naquele momento. Sentia-me angustiado, revoltado, triste, chateado... eu era um poço de emoções que eu não conseguia deitar para fora. Eu não conseguia aceitar! Era quase como enfiar uma faca dentro de mim e rodar vezes sem conta! Eu não conseguia aceitar a palavras do médico, procurava desesperadamente uma esperança entre elas, mas elas eram tão negativas que tornava-se impossível ver uma luz no fundo do túnel.
O Miguel não podia morrer. Ele não era uma pessoa fraca. Ele era determinado, forte. De nos dois ele foi sempre o mais forte! Sempre!
**
Fui para casa após muita insistência da Clara em passar a noite com o Miguel.
Depois de dar o calmante a minha mãe e vê-la adormecer. Entrei no meu antigo quarto. Meu e do Miguel.
Havia anos que não dormíamos aqui. Mas há coisa de duas semanas tive que voltar. Porque a minha mãe não conseguia dormir sozinha desde que o Miguel foi para o hospital.
Caminhei lentamente pelo quarto, aquele que foi o nosso refugio por tantos anos. Onde brincamos aos policias e ladrões, onde brigamos pelos brinquedos, e nos escondemos dos ralhetes da nossa mãe. O quarto onde crescemos juntos. Até aos 18 anos, quando partimos juntos para a Alemanha. A minha mãe nunca mexeu no quarto, ela deixou-o como era, porque de vez em quando dormíamos ali quando a visitávamos e ela fazia uma cena quando a gente queria ir embora. Custava-lhe muito deixar-nos ir, custava sempre. Mesmo com Clara a viver com ela, ela não queria que fossemos nunca.
Olhei para as duas camas. A da esquerda era a minha, a da direita pertencia ao Miguel. Deitei-me na cama do Miguel, fiquei um longo tempo a olhar para o teto. Tentei aliviar a minha mente, ficar um bom tempo sem pensar em nada, mas era impossível. Tudo o que eu pensava era no meu irmão naquele hospital, com um relógio invisível em cima de sua cabeça, em contagem decrescente, a contar os dias que ele sobreviveria sem um coração novo.
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Onde esteja o meu coração
RomanceO que fazer quando a vontade de viver é nula ? Como lidar com a perda? Eu sobrevivo todos dias. Não vivo. Sinto que a qualquer momento vou explodir. Acordo e adormeço todos os dias com uma angústia enorme dentro de mim. Nao sou mais que um corpo...