Valentina estava sentada na sua cama enquanto observava uma fotografia dos seus filhos quando eram mais novos. Uma foto tirada num dia de praia muito longínquo. Miguel e João tinham só 10 anos, Clara tinha 8. Estavam os três sorridentes enquanto se abraçavam e posavam para a câmara velha do pai.
Sorriu tristemente, eram tão felizes. Os cinco, completamente felizes, com todos os conflitos que uma família normal devia ter.
Eram tão especiais, os seus meninos. Todos eles, cada um a sua maneira. Clara , sempre tão alegre e inteligente. Miguel, sempre aventureiro e traquina. João, sempre responsável e amável.
Eles foram a sua força em todos os momentos maus de sua vida. Foram o alicerce que ela precisou quando o Benjamin morreu deixando-a sozinha com eles. Foram o ânimo que ela precisou quando perdeu o seu emprego de longa data na fábrica de sapatos da qual era colaboradora há anos. Foram o apoio que ela teve quando esteve em baixo, triste e amargurada. Foram tudo, tudo!
Agora o mundo desmoronava-se a volta deles. Miguel no hospital, Clara inconformada e João morto.
Levou a fotografia aos lábios, seus olhos inundados pelas lágrimas. A vida era tão injusta. Memorias de João rondavam a sua mente. Mas a que mais se repetia era aquela, do dia em que Benjamin morreu.
Valentina chorava sozinha no quarto quando João entrara e lentamente caminhou até ela. Sua mão segurou a dela enquanto lhe dava um beijo estalado do rosto. Não disse nada, o que uma criança de 11 anos podia dizer numa situação daquelas, mas consolou a mãe, abraçou-a com força e disse que a amava.
Aquela era a memoria mais adorável que tinha dele.
Aqueles dois dias tinham sido tão maus, tão maus que ela só queria adormecer e não acordar nunca mais.
Parecia um pesadelo, um pesadelo que o seu filho tivesse cometido tal ato. A lembrança de como tudo aconteceu não deixava a sua mente.
João tinha passado por ela minutos antes na sala quando chegou a casa, tinha-lhe dado um beijo terno na testa e sorrido para ela de forma doce quando caminhou para o seu quarto, Valentina não percebeu que era uma despedida.
Segundos depois ouviu a campainha tocar freneticamente, correu para abrir a porta e deparou-se com Marta. Ela estava muito descomposta, seus cabelos negros estavam despenteados, ela trazia vestido a sua camisa de noite com um robe de seda aberto e nos pés umas pantufas cor de rosa, tinha um papel amarrotado na sua mão e lagrimas nos seus olhos.
- Marta, o que...
Ela não a deixou falar, entrou na casa quase a correr, estava aflita, soluçava e corria pela casa.
- O João...onde está o João!
- No quarto, mas...
Foi então ela ouviu, o tiro. A expressão de Marta se alterou de medo para pavor, e logo depois as lagrimas presas em seus olhos inundaram o seu rosto, caiu no tapete da sala, num choro desconsolado enquanto Valentia corria para o quarto do filho.
- JOÃO! - O grito que saiu das entranhas de Valentina quando encontrou o filho ensanguentado no chão ouviu-se no prédio todo.
A partir desse momento, foi tudo surreal.
Marta continuou no chão enquanto chorava, chegara tarde demais.
Assustados com o grito de Valentina, alguns vizinhos entraram na casa pela porta que Valentina deixara aberta quando Marta chegara.
Alguém chamou a ambulância enquanto um dos vizinhos acalmava Marta e outro tentava levantar Valentina que estava agarrada ao corpo do filho.
Uma hora depois o corpo de João era levado numa maca, todo coberto. E Valentina não podia acreditar que aquilo estava a acontecer.
- Acho que isto é para si. - Um dos policiais que tinham estado no quarto e seguido com ela para o hospital estendeu um envelope a Valentina. - Tinha outros dois iguais no quarto. Um para uma tal de Clara e outro para um tal de Miguel.
Quando o policial se afastou, Valentina observou o envelope que tinha Mãe escritos com a letra de João. Abriu-o imediatamente.
Mãe,
Sei que não estavas a espera disto, e sei que neste momento a minha partida dói imenso, mas espero que entendas as minhas razões. E que não me odeies por ter saído assim da tua vida. Mas foi por uma boa causa mãe, tudo por uma boa causa.
Estou a deixar-te esta carta não só como uma despedida, mas para que cumpras a minha vontade, mãe.
Dá o meu coração ao Miguel. Eu quero isso, foi a razão que me levou a fazer o que fiz. Peço-te que me compreendas mãe, mas eu não ia conseguir viver num mundo sem o Miguel. E o meu coração era o mais adequado para ele, então eu dou o meu coração ao Miguel, de bom grado.
Não me arrependo desta decisão, o facto de ter decidido morrer voluntariamente fez-me aceitar a morte de braços abertos. O Miguel tem tanta coisa por experimentar ainda, eu não me perdoaria nunca, sabendo que vive em mim algo que o faria salvar-se e que não fiz nada para isso.
Se eu pudesse escolher, mãe, tu terias os dois do teu lado, para sempre. Eu e o Miguel, a cuidar de ti até seres velhinha e precisares de bengala.
Mas infelizmente não foi assim, então escolhi dar a minha vida pelo Miguel, eu amo-o, e não suportaria não o salvar.
Eu assinei um documento que me tornou doador de órgãos, mas quero que o meu coração vá para o Miguel! Não quero que ele fique na lista de espera! Essa é uma das razões pela qual eu te deixei esta carta, mãe. Eles vão querer dar o meu coração para alguma outra pessoa que esteja na lista a frente do Miguel, e eu não quero isso, quero que lhes mostres esta carta, que está assinada por mim. Além disso, haja qualquer problema nesse quesito, eles vão querer uma decisão tua e da Clara, que são as familiares mais próximas que tenho. Quero que vocês digam que só aceitam doar o meu coração ao Miguel. Sei que isto pode parecer egoísta e injusto em relação aos outros doentes, mas eu morri para que o Miguel possa viver, então não faz sentido que o meu coração fique com qualquer outra pessoa que não ele.
Amo-te mãe, para onde quer que eu vá, eu prometo que vou cuidar de ti, da Clara e do Miguel!
Um beijo,
João Pedro Lima
- Oh João... - Valentina soluçou. - E achas que o Miguel vai conseguir viver num mundo sem ti?
**
Como João previu, queriam dar o seu coração a alguma outra pessoa que estava na lista de espera há mais tempo que Miguel. Mas Valentina e Clara não permitiram isso, mostraram a carta e sendo parentes de João, tinham um certo poder sobre a decisão. Valentina já tinha perdido um filho, não perderia outro. Mesmo parecendo injusto, naquela mesma noite Miguel foi levado para a sala de operações, e horas depois tinha o peito aberto, pronto para receber o coração do irmão.
Doutor Jaime seria o médico a realizar a operação. Aquela historia toda tinha-o abalado de forma única. Em tantos anos de carreira nunca vira algo parecido. Era triste e emocionante.
- Eu não quero imaginar a reacção deste rapaz quando acordar. - Comentou uma das médicas que estava ali de apoio ao doutor. Alguns ajudantes acenaram em concordância.
- Doutor, aqui está o coração. - Um auxiliar entrou na sala, trazendo uma pequena geleira cuidadosamente.
- Vamos começar. - Doutor Jaime disse rezando para que a morte de João não tivesse sido em vão.
Era um processo delicado, qualquer erro seria fatal.
Mas doutor Jaime conseguiu instalar o coração de forma correta no corpo de Miguel. Do lado oposto , perto dos bisturis e outras ferramentas estava o coração danificado, o de Miguel.
Quando o coração estava devidamente acomodado no peito aberto de Miguel, Doutor Jaime deu duas batidinhas no órgão, usando dois dedos, e então, impulsionado, ele começou a bater. A bater pacificamente, como se sempre tivesse feito parte daquele corpo.
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Onde esteja o meu coração
RomanceO que fazer quando a vontade de viver é nula ? Como lidar com a perda? Eu sobrevivo todos dias. Não vivo. Sinto que a qualquer momento vou explodir. Acordo e adormeço todos os dias com uma angústia enorme dentro de mim. Nao sou mais que um corpo...