Capítulo Um

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Talvez eu só tivesse entrado naquele carro por que era isso que meus pais queriam. Ou talvez eu só estivesse sentado nele, sob a luz fraca da lua crescente, ao som da harmonia de buzinas impacientes e da passagem do rio pedregoso abaixo dos meus pés, por que eu precisava daquilo. Talvez aquilo que me curasse da dor que só crescia.

Talvez.

Era a nona ou a décima vez que minha mãe dava as mesmas instruções do banco da frente, enquanto se agitava olhando ao espelho. O trânsito estava parado há quase meia hora, as luzes dos faróis formando um percurso de neblina a frente, para fora da cidade, o som familiar da pedra batendo em água, a brisa suave entrando pelos vidros do carro, o cheiro de pinho e correnteza. E essa parecia a hora perfeita para que ela pudesse ter uma crise maternal de proteção e tagarelar:

- Pelo amor de Deus, filho, se acontecer alguma coisa, se descobrir que tem alergia a picada de algum inseto de lá, se comer alguma coisa e a gargante fechar, se cair no rio e bater a cabeça, que Deus te livre, liga para a mamãe, ouviu?- e ela tinha a mania de se virar e me encarar profundamente para ver se eu tinha a entendido.- Eu quero você voltando inteirinho.

- Tá, mãe.- respondi, desviando meu olhar para a janela. Ela continuou dizendo alguma coisa, mas não prestei atenção.

Eu nunca tinha reparado como a vista daquela ponte era linda. O rio abaixo de mim, a floresta um pouco mais a frente, densa e escura, a cidade às minhas costas com mil luzes reluzindo já distantes, o que permitia aos meus olhos se encherem do céu negro e da Lua. E que Lua. Nunca tinha reparado tanto em astros como naquela noite. Podia contar cada cratera, perceber cada distorção.

Meus pés batucavam o tapete de carpete o tempo todo, meu coração batia forte. Era uma característica minha estar nervoso até para coisas bobas. Quero dizer, que mal faria eu ir à um acampamento?

Olhei para meu braço, o relógio me contando que já estávamos meia hora atrasado, pelo lugar em que estávamos parados. Tentei não me importar, mas podia sentir a brisa arisca puxando meus pelos na nuca.

Meu pai praguejava, com o braço para fora de nosso Chevrolet modesto, segurando um cigarro aceso:

- Que droga, Veronica, eu te disse que a porcaria da lanterna não ia ter necessidade num lugar equipado como aquele! Agora vamos fazer o garoto chegar atrasado por uma coisa que nem vai usar.

- Por você, ele só levava duas cuecas.- respondeu minha mãe, apertando os nódulos dos dedos, como sempre fazia quando estava prestes a chorar. Eu estava acostumado. Meus pais sempre brigavam, e às vezes muito feio, a ponto de minha mãe sair de casa chorando e me puxando pelo braço, dizendo que íamos passar uns dias na casa da vovó. No começo eu não entendia o código, e adorava passar a estadia na casa dela, por que minha vó me dava bolo de cenoura e assistia televisão comigo, até os programas mais sem graças. Mas quando eu não cabia mais dentro do baú do quarto, percebi o que ele significava, e comecei a ter noção do que acontecia em casa.

Mas isso parou de acontecer. E nesta época, quando meus pais discutiam sobre qualquer coisa, ambos se calavam por muito tempo, até que um tivesse a coragem de falar sobre qualquer outra coisa, e assim fingiam que nada havia acontecido. Bem maduro. E eu só esperava que não fosse o caso naquele dia, por que assim poderíamos fingir ser apenas uma família feliz e comum deixando seu único filho em um acampamento legal para passar o verão.

O trânsito deu uma brecha, e eu peguei meus fones de ouvido favoritos e coloquei minha playlist para relaxar. Era recheada de músicas antigas, rocks dos bons tempos, folk tranquilo e até uns pops daqueles bem chicletões, só para não perder o costume. Eu olhava para a floresta densa e escura que ia se afunilando a minha frente, o tempo todo imaginando como ela seria por dentro, se haviam animais, se ela era fria e silenciosa ou com sons de pássaros e espaços para correr. E mesmo eu morando na mesma cidade desde que nasci, nunca tive a coragem de explorar aquela floresta, mas sempre os mesmos pensamentos enquanto atravessava aquela estrada de carro a caminho de outras cidades.

Buracos no CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora