13 anos depois
- Alice, acorda, eu não quero chegar tarde na praia.
Mantive meus olhos fechados e respirei fundo. Eu odiava esse lugar. Odiava vir pra cá todo o final de ano e ir embora só no final de janeiro. Sempre odiei. Não me leve a mal, nada contra esse lugar, seria idiotice minha dizer que a Bahia não é maravilhosa com todas essas praias e toda essa receptividade natural, mas pra mim simplesmente não dava.
- Alice, anda logo!
Passar um ou dois dias com a minha prima era até que tolerável, mas quase um mês e ainda ter que dividir quarto?! Era loucura. Podíamos ter o mesmo sangue, mas eu posso garantir que ela já me tirava do sério desde a maternidade. Fotos em família? Ela sempre dava um jeito ficar do meu lado pra me dar um beliscão na hora do flash. Festas? Minha tia resolveu dar à luz três dias antes que minha mãe, então nossos aniversários eram comemorados juntos, e ela, claro, sempre abria todos os presentes antes de mim e me deixava com os que ela não gostava. Quem precisa de inimigo com uma prima dessa?
- Eu vou descer pra tomar café e se alguém me perguntar, vou dizer que você não quer ir.
- Eu já acordei, Bárbara. Acontece que eu não sou um robô como você pra acordar, se maquiar e se trocar em 15 minutos. – Falei baixo ainda de olhos fechados.
- Quem disse que eu estou maquiada? – Respondeu indignada – Enfim, eu não sou um robô, você que é uma lesma. Levanta logo dessa cama e arruma esse ninho na sua cabeça, esse ano você tem que desencalhar, priminha. – disse e bateu a porta com força ao sair.
A contragosto me sentei na cama e me espreguicei, abrindo os olhos pela primeira vez. Procurei o relógio de cabeceira de Bárbara e vi que ainda eram 08:00, comprimi meus lábios para não soltar algum xingamento ao vento. Para completar, nem meu pijama de alcinha era capaz de me deixar com menos calor. Prendi meu cabelo em um rabo de cavalo e abri a mala, me amaldiçoando pela pressa do dia anterior em encontrar o pijama para dormir. Viemos com um voo que aterrissou em Salvador a uma hora da manhã e eu não poderia estar mais cansada. Desarrumei ainda mais minha mala para pegar minha necessaire e meu biquíni, fazendo uma promessa pra mim mesma que arrumaria tudo no guarda roupa assim que chegasse em casa novamente. Fui em direção ao banheiro, me troquei, desfiz meu rabo de cavalo, penteei meu cabelo e deixei-o solto. Voltei para o quarto, peguei meus óculos escuros e decidir descer, não precisava da Bárbara me apressando novamente. Desci as escadas da casa e me deparei com cabelos negros inconfundíveis: Tia Debby.
- Bom dia minha querida! – ela disse assim que alcancei o último degrau e me encontrei em frente à cozinha, onde estavam tomando café da manhã. – Bá nos disse que você preferira dormir, já estávamos de saída.
- Bom dia gente! – falei para todas as presentes, enquanto cumprimentava uma por uma na mesa, até mesmo minha querida prima – Pois é, acabei mudando de ideia, não posso perder o primeiro dia de praia das férias não é mesmo? – Respondi e olhei de relance para Bárbara, que estava do outro lado da mesa, exatamente a minha frente. Ela me olhava com indiferença.
- Tome seu café rápido filha, e coma algo decente. Eu e sua tia vamos nos trocar e carregar o carro. Hoje vamos pra Praia de Ipitanga. O trajeto é longo, e apesar de levarmos comida para o caminho, é melhor se alimentar bem, ouviu? Amo você. – Ela disse e subiu as escadas com minha tia, começando a falar do quanto precisava daquelas férias.
- Tia Cássia só pode estar brincando! Ipitanga não é aquela praia que a gente demora quase uma hora e meia pra chegar? – Bá disse irritada. Ela ainda não tinha saído da mesa, então tecnicamente me fazia companhia. Tecnicamente, já que se ela tivesse notado isso, já teria se retirado. – O que custa irmos pra Imbassaí? É longe também mas pelo menos de lá todo mundo gosta.
- Bárbara, relaxa. Nós chegamos ontem, temos um mês inteiro pra ir pras outras praias. – Falei enquanto fazia um lanche pra mim. – Aliás, nós não vamos à essa praia há anos, você sempre reclama dela e nossas mães acabam declinando. É tudo igual, seja lá onde formos vamos ter mar e areia. Você sabe disso. Porque você implica tanto com essa em específico?
- Por que ela é longe. LONGE. Eu juro que não entendo o motivo delas insistirem tanto pra ir pra lá. Como você mesma disse, é tudo igual, o que muda é os quarenta minutos a mais dentro do carro e as horas a menos que eu tenho de sono.
- Você sabe que lá é mais tranquilo – falei imitando a voz de minha mãe, Bá riu de leve enquanto tomava um pouco de suco de laranja. – Além de que, se formos hoje já tiramos isso da frente. Você sabe o porre que é quando elas querem ir pra lá. - Sua mãe então passou com uma sacola de praia e pediu para que fossemos para o carro. – Vamos! - Engoli o resto do lanche e no caminho para o automóvel pude ouvir uma Bárbara bufando. Ri sozinha.
Entrei no banco de trás do carro seguida por Bá, que se acomodou no lado oposto do meu. Mamãe e Debby, que dirigia, logo engataram uma conversa animada sobre o novo point que abrira do lado de fora do nosso condomínio que uma delas leu sobre em um blog famoso, enquanto Bárbara posicionava os fones de ouvido no lugar. Nós duas sabíamos que aquela conversa duraria a viagem inteira e esperta tinha sido ela, que lembrara de trazer o acessório. Sem sinal no celular e sem nada mais produtivo para fazer, deitei a cabeça no vidro e fechei os olhos na intenção de dormir.
Eu relutava em concordar com minha amada prima, mas era a mais pura verdade: ir para Ipitanga era um saco. Era certo que em nossas vindas para Salvador éramos obrigadas a acordar cedo todos os dias para "chegar em um horário decente na praia", mas o que me incomodava sobre essa em específico era o simples fato de que ela era pelo menos uma hora mais distante de todas as outras, e, apesar de todos os anos que conseguimos escapar dessa cansativa roadtrip, dessa vez não tivemos escapatória.
Nossas viagens anuais à capital da Bahia para a passagem do Ano Novo eram uma tradição na família. Começara quando nossas mães eram crianças e vovó e vovô compraram uma pacata casa por lá, afim de sair do ciclo vicioso do litoral de São Paulo, e se estende até hoje, mesmo depois que eles vieram a falecer em um acidente de carro quando elas já eram adolescentes. A fim de se unirem mais após a morte dos pais, elas fizeram um pacto de vir para cá todo ano na data favorita de sua mãe, não importa o que acontecesse. As duas casaram, ficaram grávidas, uma delas perdeu o marido e a outra se divorciou, mas aqui estamos nós.
*
Tanto mamãe quanto tia Débora mantinham boas memórias da praia de Ipitanga, portanto sempre insistiam para que voltássemos pelo menos duas vezes a cada período de tempo que fizéssemos nossa viagem em família. Um discurso sobre como gostávamos de lá quando crianças e como Bárbara havia aprendido a nadar em uma daquelas piscinas naturais quentes que se formam quando a maré baixa, podia ser recitado por mim ou por Bá sem muitas dificuldades, de tanto ouví-lo da boca de nossas mães.
- Chegamos! – Tia Debby anunciou depois de estacionar o carro, o que me fez sair de meus pensamentos. Cutuquei Bárbara que dormia numa tentativa bem sucedida de acordá-la, ja que despertou após alguns resmungos. Peguei o cooler, uma das bolsas de praia e minha cadeira para ajudar enquanto os outros itens foram divididos entre minhas três companheiras de viagem. Nos dirigimos então para o deck suspenso na parte de cima da barraca que estávamos acostumadas a ficar, e, enquanto as mais velhas foram cumprimentar a dona da barraca – a qual eram amigas e Bá se apressava para não perder mais tempo debaixo do sol, atravessei o ambiente e me apoiei na balaustrada de madeira afim de observar o mar, que estava calmo e reluzia o forte brilho da luz do sol. Fechei os olhos e inspirei devagar aquele cheiro tão característico e tão conhecido. Não poderia me sentir mais em casa.