Andando em Frente

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Era um dia frio quando amanheceu. Ele mal sabia onde estava, só conseguia sentir que estava em movimento, ouvia vozes, via movimentos e borrões mas entendia nada. Só entendia que ainda estava vivo e era por isso que lágrimas corriam pela sua face, mais do que ele gostaria de admitir. Deimos ia e voltava de seu sono conturbado com pesadelos mais horrorosos ainda, mas não desistia e sempre tentava dormir de novo, quem sabe dessa vez ele não dormia para sempre?

Era noite, estava frio, ventava e Deimos estava numa rua deserta, já tinha tido esse pesadelo antes, já sabia o que ia acontecer, mas ainda assim forçou seus pés a lhe obedecer e começou a andar. O lugar a sua volta era uma rua Iluminada, isso é, 'Iluminada' só no nome, pois na rua em si não possuía nenhum tipo de luz em si que não fosse a lua cheia no céu. O bairro todo estava quieto, com nenhum barulho exceto a sua respiração e o vento a rugir rapidamente. Mas era só continuar andando que ele ouviria os gemidos de dor na esquina seguinte.

A rua de paralelepípedos se abria em uma bifurcação mais a frente, uns cinco metros se ele tivesse que apostar. Nas margens da rua haviam casas e comércios, todos fechados e escuros, não havia sujeira no chão, não haviam gatos rebeldes caçando lixo, não haviam transeuntes, só havia Deimos e a escuridão. Ele andava, mas não queria, ele sabia o que iria ver, ele sabia qual seria a brutalidade, ele sabia qual seria o ódio que iria sentir. Mas ele precisava ver, seus pés lhe forçavam assim como sua preocupação pela pessoa gemendo de dor.

Ele chegou mais perto da esquina e viu uma única luz acesa na loja a frente. Sem placa, portas ou identificação e com várias ferramentas e materiais aos arredores, ele deduzia que o dono ainda estivesse construindo a própria loja. Ele andou mais, sempre lentamente, atravessando a rua. Ele não precisava olhar para saber que a sua esquerda se encontrava o caminho direto para o muro branco que dividia as seções pobres e ricas da cidade e que a sua direita o caminho simplesmente continuava quase infinitamente com casas sempre ladeando as ruas.

As casas em si sempre mudavam de forma em seu pesadelo, então Deimos não fazia questão de olhar para elas, mas a loja a sua frente era sempre da mesma forma, sempre o mesmo lugar.

A loja não tinha portas e o balcão de atendimento que dava de frente para a rua estava sem grades. Mas é claro que os balcões com grades só existiam nos bairros pobres, por que era só ali que os comerciantes tinham o medo de serem roubados. Deimos entrou na loja pelo buraco onde logo existiria uma porta e olhou em volta.

O lugar fedia a tinta fresca e não possuía muito espaço, era só a fachada, afinal. Logo abaixo do balcão existia o espaço para guardar os produtos e de frente para o balcão, um pouco a esquerda do buraco da porta, existia o corredor levando até o que Deimos achava ser o depósito. Ele adentrou o corredor. Escuro por não ser alcançado pela luz da lua, sua única iluminação era a luz amarela do lampião da sala no final do corredor. Deimos observou as duas portas na direita e na esquerda, ele nunca tentou abrir elas, mas de algum jeito sabia que estavam ambas trancadas. Ele se aproximava cada vez mais da sala no final do corredor. Não havia mais gemidos. Só havia um choro abafado.

Ele chegou tarde demais. De novo. De novo e para sempre. Sempre tarde demais.

Ele chegou no final do corredor. Estava a frente de uma sala grande e espaçosa, havia muita poeira voando ao redor, existia também várias caixas e barris de madeiras espalhados pelos cantos e duas portas nos cantos extremos da sala, uma na direita e uma na esquerda, provavelmente levando à rua de paralelepípedos lá fora. Pelo tamanho das portas, era por ali que passavam as carroças carregando os suprimentos para a loja. Havia uma única fonte de luz na sala e não era um lampião e sim um candelabro preso no teto. O candelabro balançava levemente. O chão da sala era um metro e meio mais baixo que o corredor, de forma que havia uma escada para o fácil acesso, assim como uma rampa improvisada com tábuas de madeiras, provavelmente para empurrar caixas de produtos corredor acima e abaixo. Mas era no meio da sala que estava aquilo que fazia Deimos acordar gritando. Três homens. Duas mulheres. Ou melhor, uma mulher e uma garotinha. Ele sempre via essa mulher com cabelos castanhos cor de mel em seus pesadelos, mas só agora sabia seu nome. A mulher era Alana. Ela chorava, e, mesmo sendo segurada por um dos homens, seu choro ainda dava para ser ouvido - e sentido - por Deimos. Os homens, dois de pé e um deitado, claramente morto com estacas de pedra se projetando para fora de seu peito, estavam todos vestidos da mesma forma; com as roupas bege e azuis da Guarda Iluminada, com as rapieiras e porretes em suas cinturas, com a exceção do homem perto da garotinha caída no chão, claro. Ele segurava no alto seu porrete, o descendo com cada vez mais força na garotinha, soltando ocasionais arfadas enquanto o fazia. A cena se desenvolvia lentamente a frente de Deimos, era sempre assim. Mesmo ouvindo os barulhos molhados que o porrete fazia ao atingir com toda a força de um homem adulto, ou mesmo quando via a cabeça da coitada da garota afundando cada vez mais a cada golpe, deixando-a desfigurada e irreconhecível fazendo seu sangue se espalhar no chão assim como pedacinhos de crânio e uma gosma cinzenta que Deimos só podia supor que, algumas horas atrás, faziam parte do cérebro da garota.

O Corvo (EM HIATO)Onde histórias criam vida. Descubra agora