KRAUS

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  Quando chove, a gente desejaria poder chorar. É novembro,faz dez dias que chove, a terra é um lodaçal. Qualquer objetode madeira cheira a fungos.Se eu pudesse dar dez passos para a esquerda estaria aoabrigo, há lá um alpendre. Já me contentaria com um saco paracobrir-me os ombros ou só com a esperança de uma fogueiraonde me secar ou de um trapo enxuto para pôr entre a camisae a pele. Penso nisso, entre um movimento e outro da pá; sim,creio mesmo que dispor de um trapo seco seria, concretamente,a felicidade.Mais molhado do que isso, impossível; só posso tratar deme mover apenas o indispensável e, acima de tudo, não fazermovimentos diferentes, para evitar que uma nova porção depele fique em contato com a roupa encharcada e gélida.Sorte que hoje não há vento. É estranho: de alguma maneira,sempre tem-se a impressão de ter sorte: de que alguma circunstância,ainda que insignificante, nos segure à beira do desespero,nos permita viver. Chove, mas não está ventando. Ou,chove e venta, mas a gente sabe que à IJ.oitenos toca o suplementode sopa e então, hoje também, encontra-se a força parachegar à noite. Ou ainda: chove, venta, a fome é a de sempre;então a gente pensa que, se precisasse mesmo, se já não tivessenada em seu coração a não ser sofrimento e tédio (como acontece,às vezes, quando parece mesmo que chegamos ao fundo). " bem, ainda pensamos que, querendo, em qualquer momentopodemos tocar a cerca eletrificada ou jogar-nos debaixo de umtrem em manobras, e então pararia de chover.133Desde a manhã estamos fincados no barro, de pernas abertas,sem despegar os pés dos dois buracos que eles formaram noterreno pegajoso; balançando-nos nos quadris a cada movimentoda pá. Eu estou na metade da escavação, Kraus e Clausnerno fundo, Gounan acima de mim, no nível do chão. Só Gounanpode olhar ao 'redor e por momentos, com uma meia-palavra,avisa Kraus que apresse o ritmo ou que, eventualmente, descanse,conforme quem vem passando pela rua. Clausner trabalhade picareta, Kraus alcança a terra para mim, eu a alcançoa Gounan que a amontoa ao lado do buraco. Outros vão e vêmcom carrinhos de mão e levam a terra quem sabe aonde, poucoimporta, hoje o nosso mundo é este buraco na lama.Krauserrou um golpe; um bolo de barro voa e gruda-seno meu joelho. Não é a primeira vez; peço que tenha cuidado,mas com pouca convicção: ele é húngaro, entende pouco dealemão e não sabe uma palavra de francês. Ê comprido, usaóculos, tem um rosto estranho, pequeno e torto; quando riparece criança, e' ri freqü~ntemente. Trabalha demais e comexcessivo vigor; ainda não \aprendeu nossa arte de economizartudo, fôlego, movimentos, ptynsamentos até. Ainda não sabe queé melhor apanhar, porque d~ pancadas em geral não se morre,mas de esgotamento sim, e 4 uma morte feia, a gente só se dáconta quando já é tarde derp.ais. Kraus ainda acredita. .. coitadodo Kraus! Não, não é io raciocínio dele, é apenas a suahonestidade boba de pequ~no funcionário, trouxe-a até aqui,acha que aqui é como lá fora, que trabalhar é honesto e lógicoe até conveniente, já que (pelo que todos dizem) quanto maisse trabalha, mais se ganha e se come.- Regardez-moi ça! Pas si vite, idiot! (Olhe para mim.Não tão depressa, idiota!) - pragueja Gounan lá de cima;logo se lembra de traduzir em alemão: - Langsam, du bloderEiner, langsam, verstanden? (Devagar, burro, devagar, entende?).Kraus pode matar-se trabalhando, se quiser, mas hoje não,estamos trabalhando em conjunto e o nosso ritmo depende doritmo dele.Esta é a sirena do Carbureto, os prisioneiros ingleses vãoembora, são quatro e meia da tarde. Logo passarão as moçasucranianas e serão cinco horas, poderemos endireitar o lombo,134I', faltará só o caminho de volta, a chamada, o controle dos piolhose poderemos descansar.Chamam (Antreten); de todas as partes surgem os bonecosde barro, esticam os membros endurecidos, guardam as ferramentasnos galpões. Nós tiramos os pés do barro, com cuidadopara que os tamancos não fiquem grudados lá dentro, e vamos,desengonçados e gotejantes, entrar em forma para a marcha deregresso. Zu dreien, em linhas de três. Tentei ficar ao lado deAlberto; hoje trabalhamos um longe do outro, vamos perguntarnoscomo é que foi, mas alguém me dá um tapa no estômago,acabei atrás, olha aí, justamente ao lado de Kraus.Saímos. O Kapo marca o passo com voz áspera: - Links,links, links (esquerda, esquerda, esquerda); no começo ospés doem; logo nos esquentamos, os nervos se relaxam. Tambémo dia de hoje, esse hoje que, de manhã, parecia insuperá"vel, eterno, o atravessamos durante todos os seus minutos; agorajaz, acabado e logo esquecido, já não é um dia, não deixourastro na memória de ninguém. Bem sabemos que amanhã serácomo hoje; talvez chova um pouco mais ou um pouco menos;talvez, em lugar de cavar o chão, iremos ao Carbureto paradescarregar tijolos. Ou talvez amanhã termine a guerra, outalvez sejamos todos mortos, ou transferidos para outro Campo,ou aconteça uma dessas reviravoltas que, desde que existe oCampo, são cada vez profetizadas como iminentes e certas.Mas quem é que pode, seriamente, pensar no dia de amanhã?A memória é um instrumento estranho: durante o tempopassado no Campo, dançaram na minha cabeça dois versos queum amigo meu escreveu, há muito tempo atrás:". " infin ehe um giornosenso non avrà piu dire: domani".12Aqui é assim. Sabem como é que a gente diz "nunca",na gíria do Campo? Morgen früh: amanhã de manhã.Ê a hora do links, links, links und links: a hora na qualnão se deve errar o passo. Kraus é desajeitado: já levou um  pontapé do Kapo porque não sabe caminhar bem na linha;agora começa a gesticular gaguejando um alemão miserável, ora,ora, quer me pedir desculpas por essa bolada de barro, aindanão compreendeu onde é que estamos, esses húngaros são genteestranha mesmo.


  12 "Até que um dia, dizer amanhã, não terá sentido algum" 


 Manter o ritmo do passo e fazer um discurso complicadoem alemão édemàis; desta vez, sou em quem o avisa que errouo passo. Olho para ele, vejo seus olhos através das gotas dechuva nas lentes: são os olhos do homem Kraus.Então aconteceu algo importante, vale a pena contá-Io agora,talvez pela mesma razãe> pela qual valeu a pena que acontecesse,naquele dia. Ocorreu-me fazer um longo discurso aKraus, em mau alemão, porém devagar, palavra por palavra,procurando estar certo, depois de cada frase, de que ele tivessecompreendido.Contei que sonhara estar na minha casa, na casa ondenasci, sentado junto com a minha família, com as pernas embaixoda mesa e, na mesa, muita, muitíssima comida. Era verão,na Itália. Em Nápoles? Pois sim, em Nápoles, não vamos complicar.Tocou a campainha, eu levantava ansioso, abria a porta,e quem aparecia? Ele, o nosso Ktaus Páli, com seuscabe-los,limpo, gordo, numa roupa de homem livre e com um pão namão - um pão de doi~ quilos, ainda quentinho. Então, Servus,Páli, wie geht's? (ai, Páli, como é que vai?), e eu me sentiafeliz, fazia-o entrar, explicava aos meus familiares quem era,que ele vinha de Budapest e por que estava tão molhado. Edava-lhe de comer e de beber, e logo uma boa cama para dormir,e era noite, mas havia um calor maravilhoso, num instante ficávamossecos, eu também que, 'COmo ele, tinha estado bemr.lOlhado.Que bom rapaz devia ser Kraus em sua vida normal, elenão vai durar muito tempo aqui, isso nota-se ao primeiro olhar,demonstra-se como um teorema. Sinto não falar húngaro, Krausestá comovido, a sua comoção explodiu, precipita-se num fluxode estranhas palavras magiares. Só deu para compreender meunome, mas pelos gestos solenes parece que ele formula jurase votos.136iJ~tPobre tolo Kraus. Se ele soubesse que não é verdade, quenão sonhei nada com ele, que, para mim, ele também não valenada, a não ser neste breve instante - nada, assim como tudoaqui é nada, a não ser a fome que temos dentro de nós e, fora, o frio e a chuva.

É isto um homem?Where stories live. Discover now