A Paixão Secreta de Evaristo

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Se me escondesses na mansão dos mortos e me ocultasses, até se aplacar a tua cólera!                                                  

Job

Era uma vez um jovem chamado Evaristo. Evaristo era um rapaz alto, de cabelos negros e olhos mimosos e cintilantes. Cresceu no seio de uma família numerosa, cheio de irmãs que soltavam risinhos e enchiam a casa com os seus aromas suaves e os rumores das saias engomadas.

Evaristo participava em todas as brincadeiras traquinas dos jovens da sua idade, fugindo à noite pela janela da cozinha e indo roubar bolos à Joana Pasteleira. Mas oh!, o que Evaristo mais gostava era dos passeios matinais no riacho da aldeia com o amigo Miguel! Inseparáveis, atiravam pedras que saltavam sobre a água, tomavam banhos infindáveis nas tardes quentes de verão, caçavam perdizes com armas improvisadas de pau seco... Foi assim que passou a sua infância, a rir e a espalhar alegria e vivacidade, encantando o povo com o seu olhar doce e deliciando as meninas com o seu sorriso matreiro; mas Evaristo não queria pretendentes - para ele, tudo o que valia eram a amizade de Miguel e as suas aventuras prodígiosas.

Ora no dia em que Evaristo completou dezasseis anos, a sua vida cruzou-se com a de uma linda moça, alta e curvilínea, com longos cabelos morenos enfeitados com pequenas tranças. Passeava errante pelo prado verdejante coberto de papoilas por onde Evaristo e Miguel cavalgavam, os pés soberbos descalços na relva macia e as delicadas mãos a tecer uma grinalda de flores vermelho-sangue.

Os cavalos abrandaram, e os dois amigos observaram-na.

Foi então que os seus olhares cruzaram, e Evaristo sentiu uma emoção arrepiante, inexplicável; quis alertar Miguel para irem embora, mas já o amigo conversava alegremente com a rapariga.

Chamava-se Doroteia, a sua voz era meiga e constante, os seus modos descontraídos. Com ela, cada palavra - cada frase! - se tornava numa doce melodia. E o coração de Evaristo disparava, e uma onda de ciúme invadia-o quando via o olhar de Miguel preso nela, qual Vénus a adorar!

Durante os dias seguintes, Miguel não foi visto. Sempre que Evaristo passava pela casa do amigo, ou ele estava com dores de cabeça ou a estudar: mas Evaristo sabia que era pouco provável que Miguel (que gozava de uma saúde de ferro) estivesse doente ou a estudar. A única razão que lhe aparecia para Miguel não lhe querer falar era a recordação do seu olhar lânguido dirigido a Doroteia.

Pobre Miguel! De facto, depois do encontro com aquela linda rapariga, Miguel sentia-se mole, apático, e a cada dia que passava com mais vontade de voltar a vê-la! Trancava-se no quarto sem querer ver ninguém, a escrever cartas patéticas exaltando a beleza ou a sonhá-la somente! E que podia ele fazer, se a adorava?

Por fim, deixou que Evaristo entrasse no seu segredo. Ficou nervoso quando detetou um brilho, uma expressão que lhe era desconhecida no rosto do amigo. Mas Evaristo acabou por exclamar, quase alegremente:

- Procura-a! Fala-lhe!

E este conselho, esta aprovação sincera do seu amigo mais fiel, deixou Miguel mais confiante. Levantou-se da cadeira e abraçou Evaristo, puxando-o depois para a rua, para a pastelaria - e foi talvez essa a última tarde de felicidade, de verdadeiro gozo daquela amizade, que Evaristo e Miguel tiveram.

As semanas seguintes foram para Evaristo uma verdadeira tortura; onde outrora cavalgara com Miguel, cavalgava sozinho; a caça às perdizes era agora substituída por horas a fio a olhar para o vazio... E não lhe dava prazer estar com mais ninguém! Começava agora a odiar mulheres bonitas, chegando mesmo a fingir que as irmãs não existiam. Nas suas horas solitárias punha-se à janela, esperando ver Doroteia e Miguel a visitar a pastelaria, a pedir bolinhos à Dona Joana! E com o desespero de não os ver, imaginava-os sozinhos debaixo de uma laranjeira, abrigados do sol, as mãos dadas... e Miguel beijava com furor os lábios cheios de Doroteia; e ela sucumbia àquele encanto de um amor requintado e confortável, apertando com mais força as mãos de Miguel. Então odiava Miguel, com todo o coração, por amar Doroteia.

A Paixão Secreta de EvaristoWhere stories live. Discover now