Prólogo

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Derek escarrou no mar, esfregando as mãos para aquecê-las em meio ao frio da madrugada. O velho pescador olhou para a escuridão revolta e deixou seu olhar passear pelas ondas até a costa. Devia faltar pouco mais de meia hora para o nascer do sol e sua rede ainda estava vaiza. O pequeno barco de Derek flutuava a dois ou três quilômetros da costa sombria. O mar estava mais escuro que o normal e as ondas faziam a embarcação oscilar de forma dramática. O pescador acabou de retirar sua rede da água e constatou que não pescara nada. Soltou um palavrão.

Aquele era um país próspero, diziam. Um reino belo, construído com sólidas estradas e cidades comerciais repletas de finas mercadorias. Derek resmungou mais uma vez:

"Que Nibala me devore se essa porcaria de país é mesmo uma beleza como dizem."

O pescador nada sabia sobre tanta riqueza e conforto. Não naqueles tempos de crise. Houve época em que o peixe era abundante, cardumes enormes davam à costa e enchiam a mesa dos camponeses, deixando também cheios os bolsos do pescador. Agora, tudo era miséria. O norte parecia definhar lentamente.

Do sul vinham histórias de campos verdes com plantações que pareciam brilhar como ouro. Aliás, estavam no fim da colheita e mesmo assim o trigo continuava caro como se fosse a própria merda da Nibala, a mulher-demônio. Não somente o trigo; tudo era caro no tímido mercado de Leidir, a aldeia onde Derek vendia seu pescado e comprava toda a mercadoria essencial para que ele e sua esposa Jeena sobrevivessem. E apenas sobreviviam.

Tudo ainda era bom demais no sul, com seus campos verdes e cidades tranquilas. Tudo era excelente naquele reino que diziam ter o melhor e mais bem equipado exército de todo o continente. As estradas seguras permitiam o intenso comércio. A riqueza, porém, estava ao sul e ao leste. Para o norte nada havia a não ser o mar escuro e revolto.

Apesar do verão, tudo parecia piorar a cada dia. As tempestades deixavam o mar agitado como um corcel jovem e por duas vezes Derek deixara o vento carregar suas velas para não perder o mastro e o barco de uma vez. Aquele era seu único sustento, se não quisesse migrar para o sul com a esposa e viver sua velhice como mendigo na populosa aldeia de Keraz ou até mesmo numa das grandes cidades do sul. Isso se ele sobrevivesse à viagem, é claro.

Diziam que o mundo acabava bem depois da costa e Derek nunca sentiu vontade de conferir. Outros falavam de uma outra terra, onde demônios habitavam ruínas de antigos templos de luz. Isso, contudo, não fazia diferença para o pescador. Precisava de peixe, mas há meses eles praticamente desapareceram. Até mesmo gaivotas e albratozes haviam partido, em busca de águas que fornecessem mais alimento.

Derek suspirou, começando a recolher a rede, quando sentiu um forte puxão. Seu coração deu um salto. A força com que a rede fora puxada indicava que ele havia pescado algo grande, talvez um cardume. Bufou com o peso, enquanto seus músculos se retesavam, lutando contra a rede. Depois de alguns minutos, finalmente o pescado pareceu cooperar e lentamente Derek puxou o conteúdo da rede para dentro do seu barco.

O pescador soltou um grunhido de surpresa quando viu a massa disforme que preenchia sua rede. Uma coisa escura se misturava entre as algas; não havia sinal de peixe.

- Mas que porcaria... - resmungou.

Ao que parecia, havia um braço humano enredado entre toda aquela massa disforme. O pescador friamente removeu o corpo da rede, retirando quase toda a lama e algas que o cobriam. Era um homem de idade indeterminada, com o rosto meio desfigurado, vestido do que restava de um gibão de couro e calças de linho.

Derek já havia encontrado infelizes assim. Imaginou que talvez seria mais uma alma atormentada, cansada da crescente miséria, que buscara seu próprio fim lançando-se de um dos penhascos que havia a leste da costa. A corrente marítima bem poderia ter arrastado o corpo até ali. Interessado em vasculhar o morto em busca de algum objeto de valor, talvez um medalhão ou uma corrente de prata, Derek estendeu sua mão para o pescoço do afogado.

Com um bote súbido, o cadáver mexeu-se, agarrando com rapidez o pulso do pescador. Derek soltou um grunhido desesperado quando viu os olhos vazios do cadáver crisparem de fúria, enquanto a boca podre se fechava sobre sua mão numa mordida dolorosa.

Desesperado, o pobre homem lutou. Aquela coisa, aquela abominação, era mais forte do que se podia imaginar de um cadáver. A luta foi curta e atribulada. Os dois se embolaram no chão do barco, lançados contra cada lado da amurada pelo balançar intermitente das ondas. Num último e angustiado esforço, Derek conseguiu jogar seu atacante de volta ao mar. O morto atingiu a água num baque quase silencioso e rapidamente afundou nas águas escuras, arrastando consigo a rede.

Ofegante, Derek xingou outra vez, enquanto tentava conter o sangue que esvaía de onde antes havia os dedos anular e mínimo de sua mão direita. Seu coração parecia um tambor e ele tinha os tímpanos tampados pela pressão. O velho pescador tomou fôlego, olhou ao redor e, ainda em pânico, agarrou seus remos. Precisava voltar logo para casa. Se havia uma coisa como aquela na água, ele precisava garantir que Jeena estava bem.

Tentando de todas as formas ignorar a dor, Derek remou de volta à costa. Rezou a todos os deuses que podia se lembrar. A proa mutilava as cristas das ondas e o único som além do chapinhar das águas provinha dos grunhidos de esforço que o pescador fazia para vencer a distância que o separava da praia.

Derek não imaginava que no dia seguinte estaria morto.

O Viajante CinzentoOnde histórias criam vida. Descubra agora