O Dilema Do Lobo

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Abro meus olhos redondos pro mundo rescaldo que me encolhi no interior. Aguço minha audição - está ventando, o frio faz secar a língua. Me esquento de dentro pra fora. Me mexo, caminho, ouço o coração palpitar forte, bombeando e bombeando. Deito-me com meus companheiros para encarar mais uma noite.

Eles não são iguais a mim, a voz diz na minha cabeça, impedindo o sono. Apesar de termos os mesmos traços, os mesmos ancestrais. Eu sobrevivo 300 mil anos, se for necessário. Distinto. Eles se deixam adestrar com o frio, se encolhem, moldam a si mesmos, encaixam-se - pois, como eu, não conseguem se esquentar de dentro pra fora, sugando o frio pra dentro, o coração bombeando, bombeando... bombardeando... informação. Calor. Caça.

Sigo encarando suas caudas.

Somos família, temos sangue similar. Observamos a Lua e protegemos os nossos. Sou a sobrevivente à era do gelo, caço o que me alimenta, corro, sou o dardo. Minhas ações confundem, a incerteza dos meus propósitos pra quem me assiste. Quando consegue acompanhar... Quando não é o alvo.
Me vêem como perversa vilã do olhar amarelo ou a magia imortal que os vagalumes perseguem. Não há meio-termo, nem cessar-fogo.

De toda maneira, a ferocidade não é efêmera. Ela existe no bem, no mal, no frio e no Sol. Os guerreiros se despedem assim que têm suas vontades saciadas, e, ao fim do dia, me recolho para perto dos similares - Não iguais, similares - pois eles me deram o mundo rescaldo o qual me encolhi no interior.

Eles me cobram a gentileza do silêncio e a ternura da obediência - para não se dizer submissão. A alegria pelo básico, pelo alimento dado, não conquistado. Dizem para que eu me divirta e me expresse mais, e nunca, jamais, volte para a floresta, para os iguais. Mas a ferocidade queima, e me protege do frio. De fora pra dentro. Bombeando... Bombardeando.
Ainda sim, sobrevivo a mais uma era do gelo por outros 300 mil anos, caço o que me alimenta, protego os meus, dou a incerteza das minhas ações embrulhadas em um papel grosso e felpudo jogado na neve entre o líquido vermelho que escorre, ou no som do grito que emito à luz da lua.
Eles já deviam ter percebido que as minhas necessidades não são compatíveis com as dos cães, mas nenhum deles parecia perceber com clareza, latindo pra mim todas as palavras grosseiras que sabiam emitir. Senti vontade de partir outra vez.

Nós, lobos, não somos domesticáveis. Eles já deviam saber disso.

A Inevitável Prisão de SerOnde histórias criam vida. Descubra agora