II - mechas

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Eu sempre amei o meu cabelo ruivo. Sinto que é uma característica que ressalta o meu maior orgulho: meus ancestrais e a Irlanda. Me apaixono por mim mesma quando vejo uma foto ou um mero reflexo do sol batendo sob as mechas vermelhas. Me pergunto se alguém já se apaixonou por mim também. Já se apaixonou ao ponto de idolatrar esses meus cabelos ruivos da mesma maneira que idolatrei o cabelo crespo e encaracolado de Ellie. 

Tenho inúmeras lembranças de deitar ao seu lado e me deixar sentir o cheiro de seus cachos, me afogar completamente na sua beleza até não querer mais respirar. Seu cabelo. Seus olhos. Sua pele negra. Tudo me trazia uma confusão de sentimentos que não poderiam ser explicados nem pela mente mais brilhante do mundo.  Mas aquela noite se destacava dentre as outras memórias que Ellie me deixou. Aquela primeira noite, na qual tive certeza que eu estava presa em no beco sem saída que era Ellizabeth Parker e seus cabelos de sereia. A noite em que eu quis passar todos os segundos da primavera com aquela mulher incrível, em que eu soube que eu nunca seria um terço do que ela era.

Saí do meu quarto com um jeans dobrado até a canela e uma blusa de frio, mesmo que isso significasse um olhar de reprovação da parte de Julie. A noite estava fria, e eu faria de tudo para que a neve chegasse à cidade. 

Sentei em uma das poltronas do hall de entrada, esperando por Ellie e automaticamente me assegurando que minha mãe havia a avisado da nossa "saída de campo". Coloquei meus fones de ouvido e deixei Panic! At The Disco tocando enquanto eu esperava. 

Minha mãe passou na minha frente e fez um sinal para que eu tirasse o fone.

- AVA, AVA, AVA!

- Mãe, que isso...

- Ei, o que a Ellizabeth disse sobre sair? Aceitou?

- C-como assim? - digo e começo a duvidar do que tinha me assegurado. - Você não avisou nada?

- Não, eu imaginei que você convencesse ela com a "língua dos jovens". 

- Merda... - deixei escapar e me levantei para correr até seu quarto.

- Boa sorte com isso, honeey! - ela gritou para que eu ouvisse e eu me virei rapidamente para trás fazendo um coração com as mãos. 

Saí correndo e quase tropeçando até o elevador para subir até os dormitórios. Eu realmente queria sair com ela.

Justamente naquela noite parecia que o sistema operacional do elevador tinha se virado contra mim. Literalmente, séculos se passavam mas os andares não. Ótimo momento para ter escolhido o último andar para se acomodar, Ellie.

Quando o elevador finalmente chegou no 5º andar, bati na porta de seu quarto arrumando meu cabelo e recuperando o fôlego.

- Ava! Que supresa, hã. - ela disse se apoiando no batente da porta.

- Eu só estava passando pelos quartos e pensei no que você disse mais cedo. - ela me olhou com uma expressão questionável - Sobre sair... Eu sei que está tarde, mas não posso deixar seu primeiro dia passar em branco.

- Ava, comigo não existe "está tarde". Qualquer hora é cedo. - disse e inclinou a cabeça - Só me deixe arrumar uma roupa.

Finalmente consegui relaxar. Eram nove horas da noite, mas nada me impediria naquele momento.

- Você quer entrar? - ela disse e mordeu o lábio superior, como se estivesse animada com algo.

Resolvi não responder a pergunta e apenas entrar no seu quarto. Não queria que ela pensasse em mim como a garota mais "certinha" do mundo. 

Sentei em sua cama enquanto ela pegava algumas roupas em seu armário e abria seu Spotify.

- Aqui, escolhe alguma coisa - disse e me entregou seu celular - Acredite, eu tenho o gosto musical mais estranho que existe. 

Enquanto eu navegava pela sua biblioteca ela começou a tirar as coisas de cima da penteadeira e finalmente se sentou no puff branco, olhando diretamente para o espelho do móvel. Ela colocou os braços dentro da camiseta que usava e foi a puxando para longe de seu corpo. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo, aquilo só poderia ser tortura.

- Ava, esse gancho é impossível, tira pra mim? - assim que ela terminou a frase, senti todos os meus músculos se congelarem, e um frio que ia até a espinha me dominou. 

- C-claro - gaguejei e ela riu, como se toda aquela situação que me causava desespero fosse ridícula.

Levantei e fui até o puff da penteadeira, me agachando para conseguir soltar o último gancho de seu sutiã. A peça era inteira de renda, e eu conseguia ver seu reflexo através do pequeno espelho posicionado na nossa frente. Aquela era oficialmente a mulher mais sexy que já tinha conhecido.

- Pronto...

- Deusa, rainha, obrigada Ava. Sou limitada demais para abrir esse negócio sozinha. - disse segurando a parte da frente do sutiã e indo até o banheiro.

Parte de mim desejava que ela tivesse se trocado ali mesmo, na frente do espelho. Porém a decisão foi de Ellie de fazer com que único fio de dignidade que me restava se quebrasse por inteiro.

 Ela saiu do banheiro com um brinco de argolas, uma blusa amarela e calças brancas. Eu não pude deixar de arregalar os meus olhos diante daquele ser humano maravilhoso. Correu até o criado-mudo e pegou uma atadura, enrolando-a em seu dedo inchado por causa do incidente mais cedo.

- Vamos? - perguntou

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As ruas estavam quietas exceto por uma única avenida aonde podiam-se ouvir gritos de torcedores fanáticos assistindo algum tipo de jogo esportivo dentro de um bar.

- O que vocês fazem durante a primavera nesse lugar? - ela se virou e começou a andar de costas na minha frente. 

- Basicamente visito todas as livrarias existentes em Galway. 

- Temos aqui uma garota culta... - ela disse rindo e colocou a mão em seu queixo.

- Parece que sim...

Finalmente chegamos ao centro da cidade. No meio da praça em que estávamos, podia ser vista uma fonte. Quando me dei conta, já estava sendo carregada até lá. "Vamos, Ava, não seja um peso morto".

- Sabe, eu nunca tive a chance de jogar uma moeda na fonte... - ela disse e sentou com os pés na água.

- Jura? - perguntei sentando ao seu lado - Temos aqui um exemplar de garota de cidade grande, hã?

- Não é isso... - ela bateu com seu ombro no meu - Meu pai sempre dizia que era uma grande besteira gastar dinheiro com algo tão fútil... Mas quer saber, alguns centavos não vão matar ninguém! - ela retrucou a si mesma e jogou um punhado de moedas na fonte. - Agora eu tenho uma infinidade de desejos para compensar as chances perdidas. 

Fechou seus olhos e me deu espaço para observá-la. Ficamos assim por quase dois minutos até que ela finalmente esboçou um sorriso e começou a falar sem abrir os olhos.

- Estou com medo de abrir os olhos e você estar me encarando como naqueles filmes de terror. 

- Confie em mim, eu não vou te cortar em pedaços com uma serra elétrica.

- Bom, nunca se sabe... - abriu os olhos e riu.

A única explicação que eu encontrava para aquele sorriso era ter sido esculpido por alguma espécie de divindade. Maldito sorriso. Desafiava qualquer religião e ultrapassava os limites da perfeição humana.

- Acho melhor voltarmos. Do contrário se prepare pra ver um picadinho de Ava ao vivo e a cores.

- O que DEFINITIVAMENTE não soa bem. - ela se levantou e colocou seu sapato de volta.

No caminho de volta um silêncio pairava sobre o ar. Não era um silêncio constrangedor, mas apenas silêncio. Como cada minuto de silêncio com Ellie parecia um minuto perdido, arrisquei a pergunta.

- Você não vai me contar o que pediu, vai?

- Nunca. Jamais...

- E por que não?

- Se eu te contar, vou ter que te matar. E parece que você já teve emoção o suficiente por uma noite. - respondeu e sorriu para mim.

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After The Sunset//Uma História de AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora