Era noite de domingo quando o telefone tocou, fazendo-a pausar um dos episódios excêntricos de sua série preferida, onde uma virgem engravidava. O silêncio do pequeno apartamento era seu melhor amigo, e se era regra as pessoas odiarem a solidão, ela se sentia exceção. Se esticando para pegar o telefone na sua mesinha de cabeceira - ela odiava o termo criado mudo e toda historia por detrás dele - foi transportada para uma realidade nostálgica.
— Filha? — A voz suave e carregada de emoção, a surpreendeu.
— Mãe? — Laura se encheu de medo com a ligação. — Aconteceu alguma coisa?
— Não, não. Será que eu não posso saber como está minha caçula preferida? - Falou, com a voz um tanto embargada.
— Sou a única, não é, mãe?
Elas riram e conversaram sobre a Carine - sua irmã mais velha - que há pouco soube que estava grávida. Falaram também sobre a outra irmã, que finalmente marcou a data do casamento depois de 5 anos de noivado. A conversa fluía, como tinha que ser.
— Como está meu pai? — perguntou ainda hesitante.
— Ele está bem, super feliz!
— Eu imagino, deve estar cheio de orgulho. Netos, filha casando...
— Laura — a mãe disse em tom de pesar —, ele também se orgulha de você. Só é o jeito dele, dê-lhe um tempo, está bem? Você deveria vim nos visitar. Sua mudança não foi fácil para ele.
Lembrando de todas as vezes em que ouviu ele deduzir que já estava na hora dela ser independente, Laura riu.
— Mãe, eu vou visitá-la, está bem? Estou apenas aguardando as coisas se estabilizarem mais. — Olhou para seu cofre em cima da geladeira, definitivamente meio vazio. — Vou esperar receber as férias, ou aproveitar um feriado prolongado. Eu estou bem aqui, pagando minhas contas, com amigos novos, feliz. Só fica feliz por mim também.
Ela sabia que não era uma completa mentira, apenas ocultou os problemas que tinha com a sua atual chefe e todas as limitações que precisava passar para nada sair do controle. A conversa já não fluiu tão bem. Elas encerraram a ligação, ambas com lágrimas seladas pela necessidade de passar a ideia de que tudo ficaria bem. Mas cada uma sabia a guerra que travava.
Já não havia mais humor para a série.
***
Mel seguia seu caminho pelas ruas da pacata cidade tão nova pra ela. Algumas pessoas a olhavam de canto, outras eram atingidas pela sua doçura. Não percebia que dentro de si carregava uma força maior do que podia imaginar. Foi nesse momento que viu a Laura no mesmo lugar dos últimos dias. Mas não era hora do almoço.
— Oi Mel. Não precisa perguntar, fui demitida.
Ela sentou naquele banco de madeira nada confortável. Pronta para ativar o modo consolo.
— Surreal isso, não é? Tudo bem que cheguei atrasada algumas vezes. Mas eu nem reclamava, e sempre saía mais tarde, e sempre chegava do descanso três minutos antes. As vezes eu usava o celular, mas todo mundo fazia isso. O Jack por exemplo, ia para o estoque e ficava assistindo filme. Eu nunca fiz isso. — Ela parou para pensar no que estava dizendo. — E eu não bebo. Quer dizer, só às vezes. Mas eu nem gosto tanto.
Laura desatou a chorar enquanto comia uma coxinha. Uma das quatro que estavam numa sacola em seu colo. Com um carinho que revelava empatia, Mel tentava confortar a nova amiga mais velha.
— É tão ruim assim?
Tentando falar de forma que ela entendesse, ainda chorando e comendo, Laura comentou.
— Sim, eu não terei como pagar o aluguel. Meu pai vai jogar na minha cara que estava certo. Vai me ligar dizendo que eu nunca vou saber me cuidar, e no meio de tudo vai deixar claro que eu não trouxe nenhum orgulho para família. Então minha mãe vai me defender e eles vão discutir e minhas tias vão dizer que é falta de marido.
Os olhos de Mel saltavam com tanta informação. Aquela família parecia ser bem estranha, pensava.
— Você gostava de lá?
— Não, apenas dos amigos. Mas gostava do DINHEIRO de lá.
Um silêncio breve pairou no ar.
— Me perdoa, Mel. Você não precisava ouvir tudo isso.
Com sua testa enrugada e balançando os ombros como quem entende da vida, Mel fez sua tradicional cara de deboche:
— Eu conheço da vida. Acho que você precisa achar outra saída. Hum... O que você gosta de fazer?
— Pagar minhas contas em dia. — Laura percebeu o quão pessimista estava sendo. — Eu não sei. Acho que nada que me dê dinheiro. A vida não é tão fácil para mim como é pra você. — ela deu um tapa na própria testa, lembrando que a menina a sua frente era órfã. — Ai, Mel... Eu não queria dizer isso assim. É só que eu tenho uma vida mais chata, mas deve ser difícil pra você também.
Ela tentou se explicar, porém Mel não se importava com todo aquele discurso. "Você tem uma vida muito mais chata que a minha" - ela dizia. "Deus me livre ter que cozinhar."
Laura se permitiu sorrir, admirando aquela criança a cada dia mais.
— Só acho que você tem que achar algo que te faça feliz. Eu decidi que quero ser professora, apresentadora, vendedora de flores e escritora.
Escritora. Aquela palavra acertou em cheio o estômago de Laura. Parecia que uma gaveta cheia de poeira foi aberta, e lá dentro ela só via pétalas desidratadas e com mal cheiro, daquilo que um dia havia sido uma linda rosa. Sim, seu desejo era esse, sua aspiração era essa. Se ela acreditasse em chamado diria que nasceu segurando uma varinha mágica que gerava histórias. Mas como em muitos casos, ela foi ensinada que a vida adulta traz responsabilidades e certos sonhos ocupam espaço demais.
"Não dá dinheiro" "É legal, mas é um hobby, não é?" "Você vai pagar para aprender isso? Faz um curso técnico, depois você pensa em diversão."
— Laura, já sei! Agora que você tem tempo, vem me visitar na casa verde. Eu tenho um diário que quero te mostrar. E quero muito que conheça a dona Joice também.
Laura foi interrompida pelo entusiasmo inocente de Melissa.
— É, pode ser...
— Agora eu tenho que ir. Toma essa flor de presente.
Laura tomou a gérbera nas mãos, uma flor da família do girassol. E viu sua pequena amiga partir outra vez.
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Florescer *DEGUSTAÇÃO"
RomanceA vida adulta é como brincar de batata quente, quando cai em sua mão você não pode passar a responsabilidade para outro. Florescer conta a historia de Ana Laura Oliveira, uma jovem que depois de ter voado da casa dos pais não percebe que ainda vive...