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Presente

O barulho da chuva do lado de fora é o suficiente para me despertar. Olho ao meu redor no quarto e vejo as gotas caírem pela janela, situando-me de onde estou. Levanto com cuidado e vou até o banheiro, tomando um rápido banho e me preparando para a rotina de mais um dia. Tudo que faço agora leva mais tempo do que o normal, por conta da idade, é claro. Afinal, oitenta e cinco anos não são como vinte.

Veja, a minha vida tornou-se algo que eu jamais esperaria. Não posso dizer que sou infeliz, jamais diria uma coisa dessas, não quando me sinto afortunado por ter vivido tantas experiências incríveis. Mas os dias atuais são difíceis. A cada manhã preciso de forças para encarar a realidade que me cerca, hoje tão diferente do que era antes. Entretanto, tudo o que faço é por ele.

Ele. É em busca dele que pego o diário e saio do quarto, andando pelo corredor branco, piso ladrilhado azul e pessoas me encarando. São as enfermeiras e outros colaboradores tentando serem discretos no que dizem, mas posso ouvir o que sussurram "lá vai ele de novo" uma delas diz, "espero que tudo ocorra bem" ouço a outra falar. E sim, lá vou eu outra vez. Pode ser besteira, mas estou com um bom pressentimento. Talvez o meu milagre aconteça hoje.

Continuo seguindo caminho pelo corredor em direção ao quarto que conheço muito bem, o 18. Quando lá chego, deparo-me com uma enfermeira que já esperava por mim.

"Bom dia, senhor." Diz ela, com um pequeno sorriso.

"Bom dia." Respondo, franzindo o cenho e preocupado como todas as manhãs. "Como ele está hoje?"

"Bem. Quer dizer, acordou um pouco agitado, mas não tanto quanto ontem. Por que não tenta falar com ele? Vou deixá-los a sós."

"Muito obrigado." Digo apreensivo. O estado dele sempre me deixa assim, nunca sei como seu humor estará a cada novo amanhecer.

Avisto-o sentado na cama, olhando pela janela. Seu perfil é indescritível, não demonstrando nenhum traço de como pode estar se sentindo hoje. Aproximo-me devagar, mas não arrisco sentar ao seu lado, apenas fico de pé parado perto da cama.

"Olá." Tento dizer.

A palavra foi o suficiente para tirar a atenção do que ele estava fazendo e o homem virou-se para me encarar.

"Oi. Quem é você?" Ele pergunta.

"Apenas um conhecido." Falo firme, mantendo a postura.

"Mas eu não te conheço." Ele rebate severo, e como todas as vezes, dói.

"O que acha de me conhecer então?"

"Não sei. Estou muito cansado no momento para isso."

"Oh, e por que está cansado? O que tem feito que te deixou assim?"

"Plantado muito ultimamente, sabe. Alguém tem que fazer alguma coisa por esse lugar."

"Entendo. Imagino que plantar deve ser uma tarefa exaustiva." Instigo a conversa, implorando mentalmente para que ele ceda e me permita continuar.

"Muito. Mas não tem problema, o esforço é recompensado quando vejo as flores crescendo. Eu as amo." Posso ver seus olhos verdes brilhando quando fala.

"Isso é ótimo! Flores são sempre belas de se admirar. Quais são suas favoritas?"

"Tulipas. Mas também gosto de rosas, apesar dos espinhos."

"Tulipas são lindas mesmo. Você tem um ótimo gosto." Digo sincero.

"Eu sei." Ele revira os olhos. "Parou de chover. Quer ver as minhas tulipas no jardim? Elas estão escondidas pois tenho ciúmes. Mas se você quiser eu te mostro. Prometo que lá é bonito." Ele fala entusiasmado.

even if you can't rememberOnde histórias criam vida. Descubra agora