Dia vinte e sete de março se tornou uma decepção, era para ser um dia bom, era para representar aquela última colherada, a raspagem no fundo do pote, de esperança no meu casamento, faríamos dezessete anos de casados, nos últimos cinco pelo menos apenas se suportando, engolindo sapos, ignorando ausência, fingindo demência aos cheiros doces que sentia quando deitava ao meu lado, aturando desrespeito. Eu o amava, então todo dia tentava algo novo, mas aí é que sempre esteve o problema, eu o amava, não o contrário, acho que em algum momento pode ter amado, mas há algum tempo não mais.
Era dia vinte e sete, acordei às oito pontualmente, antes das nove já estava no carro, na estrada para Medeiros, onde meu marido mantinha outro apartamento, já que era difícil voltar para Taguatinga todo dia, seus clientes eram todos na capital e eu entendia, mesmo que só nos víssemos nos finais de semanas e alguma visita esporádica.
Perto das três da tarde eu cheguei á capital, meu coração batia forte, tinha que chegar antes das seis, o horário que ele saia do escritório, arrumar seu apartamento, vestir a lingerie azul nova, azul era sua cor preferida, no início dizia que lembrava meus olhos, deixou de dizer isso há algum tempo, mas eu ainda lembrava de todas as vezes que afirmou isso, sorria só de pensar no quão carinhoso ele era, mantinha esperanças que poderia voltar a ser, hoje era uma tentativa, comprei também algumas velas aromáticas de lavanda, era sua fragrância preferida. Fui no salão no dia anterior, não cortei muito o cabelo, ele gostava deles longos, aparei apenas as pontas, fiz depilação completa, ele gostava da minha pele lisa, fiz todo o possível para agrada-lo e o sorriso não largava do meu rosto.
Estacionei o carro na garagem, ao lado do seu, estranhei, pensei ter estragado a surpresa que faria, mas ele me disse que estava no trabalho, quando liguei na última parada antes de chegar à capital, então talvez o carro estivesse quebrado ou solicitou um serviço de motorista particular, o trânsito da capital realmente era infernal e talvez tivesse cansado de dirigir no alvoroço.
Tirei as sacolas do banco de trás, elas estavam pesadas, também estava levando o cozido que ele gostava, demorava oito horas cozinhando, mas ele amava e fiz, com bastante quiabo, ele amaria ainda mais.
Entrei no elevador e apertei o botão circular abaixo do número quatro, meu coração estava acelerado, estava ansiosa para a surpresa, há meses nossa cama só servia para dormir, estava com saudade de ser amada por ele outra vez, mas todo final de semana ele estava exausto da semana corrida, eu entendia.
A porta do apartamento estava destrancada, não estranhei, Caetano era a pessoa mais esquecida que eu conhecia, esquecia as chaves dentro de casa, esquecia de almoçar, por vezes esquecia algo dentro de casa e tinha que subir um lance de escadas outra vez para pegar.
Liguei as luzes da sala, estranhei, a sala estava bagunçada, ele sempre foi organizado, havia roupas em cima do sofá, sapato perto da porta, duas taças de vinho em cima da mesinha de centro. Deixei as coisas em cima do sofá, ao lado das roupas dele, peguei a travessa de cozido e levei para a cozinha, ao atravessar o corredor de volta parei imediatamente e meu coração acelerou, um barulho constante estava vindo de algum lugar da casa, alguém invadiu o apartamento do Caetano porque ele deixou a porta aberta.
Corri para a sala e peguei meu celular com as mãos tremendo, me escondi atrás cortina e disquei o número dele, precisava de ajuda, não estava raciocinado direito, após o segundo toque águas passadas, de Sorriso Maroto ressonou por todo o apartamento, aquele era o toque do celular de Caetano. Meu medo passou, era ele que estava em casa, saiu mais cedo do trabalho, fui atrás do barulho, era no quarto.
Abri a porta, não deveria ter aberto.
Era ele, Caetano.
Não era só ele.
Embaixo dele estava uma loira.
Ele não percebeu a porta aberta, estava entretido enfiando o mais fundo que conseguia na moça, de olhos fechados, parecia extasiado, não o homem cansado que chegava aos finais de semana em casa, parecia outro, o mesmo que eu conheci há dezessete anos, o mesmo que eu desconheço agora.
Eu solucei, sem perceber que estava chorando. Ele me percebeu. Ela me percebeu.
Águas passadas, portas trancadas
Melhor o fim, melhor assim
Na sua estrada vejo você longe de mim,
Parto sem mágoa, voz embargada
Melhor o fim, melhor assim
Eu te amava não te bastei
É o fim pra mim...A música soou mais alta no meu ouvido, Caetano saiu de dentro dela, ele estava assustado, não consegui o ver pelado, sujo, a moça se cobriu com o lençol da cama, o mesmo lençol sujo, sujo dos dois.
-Tê, o que está fazendo aqui? Por que não me avisou que viria?
-Dia vinte e sete, dezessete anos. -foi só o que saiu como sussurro da minha boca
-O que? -ele vestiu a cueca que estava ao lado da cama em instantes, mais rápido do que eu já vi em toda vida e tentou se aproximar de mim.
Recuei dois passos, ele estava sujo.
-Dezessete anos, nosso casamento. Sinto muito por não ter avisado.
-Tê...
-Só não sinto mais do que ter perdido dezessete anos da minha vida. -não consegui controlar mais lágrimas de escorrerem
-Tê, não faz, não faz isso. -olhei acima do seu ombro, a moça estava assustada
-Os papéis do divórcio vão estar na sua mesa assim que possível.
-Você tá ficando louca? Não vou assinar merda nenhuma, Tereza. Isso foi só um acaso, não vou assinar nada, está entendendo? Você é minha mulher!
-A merda da sua mulher, nossa, que título do caralho, há anos você vem comendo meio mundo de pernas por aí, Caetano, há meses não me toca, há anos sequer consegue nem fazer um elogio sincero, não tenta ao menos, venho empurrando com a barriga um relacionamento fracassado, a merda de um empresário com uma professora de matemática do interior, o que poderia dar? Eu sinto muito por essa moça, se quiser, pode ficar com você agora, sem se esconder, eu aguentei por anos, Caetano, o perfume feminino que chegava, não tinha sequer a decência de tomar banho antes de deitar na nossa cama, aguentei quando você viajava e eu ficava, eu ligava, não me atendia, eu te amava tanto, por que diabos fez isso com a gente, seu idiota cretino? -soquei seu peito repetidas vezes e ele permitiu
Quando minhas forças acabaram eu virei, fui embora, fingindo não escutar seus gritos, fugi das suas mãos que agarraram meu pulso, fugi, voltei para Taguatinga, onde sempre seria meu lar, agora o meu, apenas.
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Com amor, Tereza
Romance"Dia vinte e sete de março se tornou uma decepção, era para ser um dia bom, era para representar aquela última colherada, a raspagem no fundo do pote, de esperança no meu casamento, faríamos dezessete anos de casados, nos últimos cinco pelo menos ap...