Era a terceira vez que eu me deslocava para visitar o Rodrigo. Na verdade quarta, se contarmos a vez em São José dos Campos. E era meu último dia ali, na casa de seu pai em Ubatuba, com o forro do teto de madeira, as pranchas de surf encostadas no canto da parede, a mesa grande da sala de jantar, o balcão da cozinha estilo americana. Almoçávamos a sobra do feijão e do arroz da noite anterior com calabresa acebolada recém feita pelo próprio Rodrigo. Tenho a impressão de que ele gosta muito de calabresa acebolada, pois cozinhou pra mim essa mistura diversas vezes.
Sentamos na mesa, um ao lado do outro. Eu com meu prato e talheres, ele com uma cumbuca de cerâmica e colher. Estava triste por ir embora. E estava mais triste ainda por ele não falar direito comigo e eu não saber o que dizer. Engoli uma garfada e olhei pra ele:
- Você lembra como era quando criança? Quero dizer, a pessoa que você era quando criança. Seu jeito, as coisas que você fazia... Acha que se parece com ela de alguma forma? Que na essência você ainda é essa mesma pessoa?
Não sei porque insistia nesse tipo de conversa com ele. Era como se eu tentasse cavar um lago raso, muito raso, em busca de mais água. Não podia aceitar que só existia aquilo que estava na superfície. Tinha que existir algo mais. Eu só precisava continuar cavando que uma hora boom! Encontraria um mundo profundo, rico e maravilhoso escondido ali embaixo.
- Não pareço nada com quem eu era criança. Eu era todo educadinho, certinho, careta. Tudo eu falava obrigada e desculpa. Bom dia, boa tarde, boa noite pra todo mundo. Nada a ver comigo hoje. - ele respondeu.
- Mas você ainda é muito educado, sempre. Principalmente com pessoas desconhecidas. Você sempre fala obrigada e desculpa, até no trânsito, quantas vezes já te vi agradecer nem que seja com um sinal de mão. E você sempre cumprimenta com bom dia ou boa tarde quando passa por alguém. Você é uma das pessoas mais educadas que conheço. Nesse ponto acho você ainda é a mesma pessoa então, mesma essência.
Ele concordou e me olhou com um ar de tanto faz. Não respondeu. Mas eu sabia que tinha ficado pensativo. E essa era minha única verdadeira intenção ali: fazer ele pensar. Quem ele era? Será que ele sabia? Será que não via que estava se perdendo de si mesmo? Quando olhasse para trás, ia lembrar de mim e das minhas perguntas?
- Isso vai entrar no livro? - perguntou me pegando de surpresa. Abri um sorriso, feliz e orgulhosa pelo que tinha acabado de ouvir.
- Talvez, agora que você perguntou, eu deva colocar no livro. - respondi.
- E vai entrar no livro eu perguntando se vai entrar no livro? - nós dois rimos. Agora com toda a certeza nós sabíamos que ia entrar no livro.
Ele levantou deixando que eu terminasse de comer sozinha. Lavou sua louça e foi para o quarto. Jamais vou esquecer dos seu olhos doces, como de um menino, orgulhoso de si mesmo, quando falou aquilo pra mim. Agora está no livro. Mas mais que isso, agora está gravado em mim.
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Pepinos do mar e suas histórias
Non-FictionRelato da viagem de uma jovem pela baía de Paraty que toma rumos inesperados. Ela parte para encontrar um amigo caiçara e juntos aproveitarem o feriado em Ilha Grande. Mas no meio do caminho os planos mudam, ela acaba indo para Paraty e vivencia de...