Cicatriz

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Cicatriz

Não precisei notar que o ônibus estava parado no ponto, com o motor desligado, para perceber que Mabel estava falando a verdade. Além do olhar entediado, ao mesmo tempo enraivecido, que o motorista direcionava a nós dois pelo retrovisor, o automóvel estava vazio. Tirando Mabel e eu; a mulher, seu cachorro e a idosa haviam desaparecido.  
 
– Então, acho melhor a gente ir, né...? – disse à Mabel. Embora o sonho ainda tivesse me abalado um pouco, esforcei-me para levantar e agir como se nada tivesse acontecido.

O motorista fez um movimento para o lado de quem iria levantar, e assim o fez, saindo do ônibus. Como aquele era o ponto final, havia uma cabine ao lado do coletivo e de lá saiu outro homem baixinho. 
 
Retiramos ambas nossas malas do compartimento em cima de nossas cabeças e nos apressamos para sair. Agora, já do lado de fora, procurávamos com os olhos pelo nosso tivô ou alguém que desse indício de estar esperando por dois adolescentes. Nada.  
 
Observei então o homem baixinho sair do ônibus com sua prancheta e assentir para o motorista.  
 
– Acha que vão demorar pra nos buscar? – Mabel perguntou.  
 
– Espero que não... –  estávamos nem um pouco animados para irmos andando até a cabana, então, a ideia de esperarmos uns minutos a mais nos pareceu mais atraente. 
 
O motorista bebericou um pouco do café servido em um copo plástico pelo fiscal. Nossa presença não pareceu incomodá-lo. Ele agia como se não houvesse ninguém ali fora o homem que o acompanhava.
 
– Corrida difícil? – o silêncio incômodo permitiu que ouvíssemos a conversa paralela, ainda que sem querer. 
 
– Estou dirigindo da ponta da Califórnia até o final de Oregon há sete horas – o motorista respondeu como se fosse óbvio –, minhas corridas são sempre difíceis. 
 
O homem tacanho riu de quem acha graça, tirando um resmungo do outro. 
 
– Vai para onde agora?  
 
– Voltar para a Califórnia, mas antes vou ter que fazer um desvio em Winchester. – suspirou pesado – Vai ser mais uma hora pra acrescentar. Sério, eu não ganho bem o suficiente para ficar fazendo essas corridas interestaduais. – bebericou mais do café. 
 
– Falando nisso, ficou sabendo da greve que está rolando no Missouri? – o fiscal perguntou. 
 
– Ah, sim. Já faz o quê? Três dias?  
 
– É, algo assim. Por que não tenta? – o condutor olhou como se não entendesse o que ele queria dizer – Uma greve! Pensa só você comandando uma greve, vai ser tão famoso quanto o canalha de Springfield!  
 
O outro riu tão alto e espontaneamente que eu quase me assustei. Ele não parecia um homem de muitos sorrisos, mas ali estava ele rindo. 
 
O motorista acabou com o café, amassando o copo com a mão e jogando no lixo.  
 
– É melhor eu ir antes que você coloque essas ideias sem sentido na minha cabeça. 
 
O fiscal o acompanhou na risada.  
 
– Até amanhã?  
 
– Não, amanhã vou fazer uma corrida em Detroit. – o condutor voltou a sua carranca de costume.  
 
– Tá certo, até mais então.  
 
– Talvez, quem sabe eu não tenha entrado em greve antes de voltar aqui? – Brincou, mas sua expressão não soava como a de alguém que fazia brincadeiras, então era no mínimo estranho. 
 
E ele partiu. O fiscal voltou para a cabine com sua prancheta enquanto Mabel e eu ficamos ali, sem o nosso entretenimento alheio.  
 
Mabel jogou a mala no chão e sentou-se sobre ela, eu logo fiz o mesmo. A estrada estava tão vazia que apenas o que passava por ali eram alguns guaxinins vez ou outra.  
 
A falta de movimentação trouxe de volta aquela sensação estranha na barriga, semelhando a medo e adrenalina. Mesmo que o sonho estivesse tão apagado na minha memória, o rastro do fenômeno estava ali. 
 
Eu não precisava de uma bola de cristal para saber que a causa disso com certeza era Bill, ele me assustava, e me amedrontava saber que eu estava na mesma cidade que ele. Eu tinha medo de reencontrá-lo e, mesmo que uma parte dissesse que isso não iria acontecer, outra gritava para eu fugir, pois ele estava mais perto do que eu gostaria de admitir. 
 
Minhas mãos suaram ao constatar isso. Foi mesmo uma boa ideia voltar a Gravity Falls? Analisando os fatos agora, eu duvidava disso.  
 
– Dipper, acho que esqueceram da gente. – Mabel zombou.  
 
– Talvez estejam apenas atrasados. – tentei soar otimista.  
 
Ela resmungou.  
 
Parecia desacreditada visto que eram mais ou menos três horas da tarde e estávamos esperando há apenas 20 minutos. Talvez tenham se atrasado no trânsito, nada demais.  Mas isso também me custou a acreditar. Não havia trânsito em Gravity Falls.  
 
– Acha melhor irmos andando? Quem sabe não encontramos com ele no caminho? – sua ideia pareceu tentadora agora que o fato de termos que esperar era real. 
 
Mas ainda havia a probabilidade de nos desencontrarmos, mesmo que essa seja uma rua de mão única, eu tinha que pensar que tudo poderia acontecer. Entretanto, antes mesmo que eu pudesse respondê-la o carro velho do Stan cantou pneu na curva, numa velocidade inédita. Assim que freou em nossa frente, o pneu riscou o chão e deslizou alguns centímetros.
 
– Crianças, entrem se quiserem continuar vivos! – não precisou de muito mais para nos convencer a entrar.  
 
As vozes irritadas e o barulho de passos que pareciam segui-lo foi apenas um adicional para no segundo seguinte estarmos no banco de trás numa posição esquisita de quem havia se jogado ali mesmo.

Demorou muito menos para nos ver de volta à estrada, algumas das pessoas que pareciam ter alcançado o carro tentaram se jogar por cima dele, como se isso fosse fazer Stan parar o carro. Outros jogaram pedras, arranhando o vidro e amassando outros lados. Stan os xingou mostrando o dedo do meio pela janela.
 
Eles ficaram para trás mais uma vez, mas a distância cada vez maior não pareceu um problema tão grande para o pequeno grupo que ainda tentou persistir para alcançar o carro mais uma vez. Aos poucos, as pessoas que seguiam o automóvel, diminuíram o passo. Desistindo de sua busca desenfreada.  
 
– O que diabos foi isso?! – perguntei ainda em estado de choque.  
 
– Maneiro...! – Mabel sussurrou igualmente chocada, mesmo que sua reação tenha sido contrária a minha. 
 
– Esses malditos estão vindo atrás de mim como lobos desde o ano passado! – mesmo que tivéssemos ultrapassado a multidão, Stan continuava a pisar no acelerador, ignorando todas as placas de limite de velocidade.  
 
– Por quê?! 
 
Eu sempre soube que meu tivô estava longe de ser o homem mais amado dessa cidade, mas não era todo dia que víamos ele ser perseguido por uma multidão raivosa.  
 
Stan coçou a nuca e suspirou antes de voltar a falar.  
 
– Essa cidade está... diferente desde que vocês foram embora.  
 
– Diferente como? – o questionei.  
 
– Vocês irão ver... – não era do feitio de Stan deixar o mistério no ar, então era no mínimo bizarro ter essa reação dele.  
 
Não insistimos muito mais.  
 
Stan também estava diferente, além de estar mais velho e sua barba branca para fazer delineando seu rosto, alguma coisa nele parecia ter mudado. Talvez tenha sido a viagem junto a Ford que o deixou desse jeito, mas não era certeza. Ele parecia mais feliz. 
 
– Onde está o tivô Ford? – Mabel arriscou em perguntar.  
 
– Ele teve que resolver uns problemas de nerd, mas já, já vai estar de volta – anunciou. 
 
A conversa no carro não durou muito mais, apesar de chegarmos à cabana rapidamente, eu estava curioso sobre quais eram esses problemas que Ford precisaria resolver, e mais curioso ainda quanto à cidade.

Descemos do carro quando estacionaram-no, arrastando nossas malas conosco, tive que colocar minha mochila nas costas. No entanto, antes mesmo de entrarmos, eu parei para observá-la.  
 
Uou... – soltei um suspiro. 
 
Lembrava-me bem de como ela havia sido destruída no Weirdmageddon e era incrível como ela não havia mudado nada. Era óbvio as reformas que tentaram fazer, como por exemplo, pintar o piso de branco, mas este já estava tão descascado que a madeira era aparente. Haviam mais setas apontando para a cabana, mas a maioria estava no chão, as marcas de pneu no terreno demarcavam o letreiro grudado na parte superior da cabana. Este letreiro que perdera as letras S e H, o "Mistery" não havia perdido nada apenas por ter sido escrito com tinta preta.  Era como se a cabana gritasse "Mistery ack", como se o ack fosse uma onomatopeia de susto.  Ou apenas um soluço bizarro.
 
– Garoto, vai ficar parado aí? – meu tivô chamou minha atenção.
 
– Ah, eu estava apenas... observando. – respondi uma pergunta que ele não fez.  
 
– Você é estranho, acho que algumas coisas nunca mudam, não é? – disse bagunçando o meu cabelo.
 
Não pude evitar rir com sua constatação. 
 
– Vamos logo, Dipper! Deixa de ficar avoado – Mabel gritou já dentro da cabana. 
 
Seu grito serviu apenas para dar um contraste no já dito pelo nosso tivô.  Não tive outra opção senão entrar de uma vez. 
 
Eu poderia ficar divagando sobre o sofá pequeno que havia substituído a poltrona de Stan, mas preferi subir para o sótão, pois teria tempo o suficiente para admirar a beleza rústica daquele lugar depois.  
 
Mabel estava ajoelhada tirando algumas coisas de uma de suas malas ao pé de sua cama. A janela, que filtrava alguns poucos raios de sol, era a única iluminação para seu trabalho.  Fiz o mesmo que Mabel e tirei minha mochila das costas, pronto para retirar alguns dos livros que eu fiz questão de trazer na mala menor, mas antes que eu me aprofundasse mais em organiza-los, minha irmã me chamou.  
 
– Ei, o que acha da gente descer um pouco? – não a respondi de imediato.  
 
– Se formos agora, você vai ficar com preguiça de arrumar depois. – neguei seu pedido.  
 
– Ah, por favor! Prometo que não vou ter preguiça. Vamos na loja só um pouquinho. – pediu um pouco mais. Olhei para ela desacreditado, e a garota juntou as palmas da mão, implorando.  
 
Isso era uma das coisas que podia ser levadas como "algumas coisas nunca mudam" levantada pelo nosso tivô. Mabel continuava daquele jeito típico dela, mas não era exatamente como antigamente, havíamos crescido e mesmo que ela levasse aquela maneira agitada, ela não era mais tão infantil e aceitava um não, embora seja teimosa.  
 
Ainda que não confiasse nem um pouco em seu dito sobre arrumarmos as coisas depois, suspirei desistente. Vendo assim não tinha como negar seu pedido, afinal, eu estava morrendo de saudades de Soos e Wendy tanto quanto ela.  
 
– Tá bom, mas vai ser só um pouco, tá? 
 
Mabel sorriu para mim, agradecida.  
 
Descemos a escada comigo na frente desta vez.  
 
Assim que entramos na loja, ganhamos uma visão diferente do que imaginávamos, não havia ninguém no caixa e nem um cliente. O que era estranho até mesmo para esse estabelecimento no fim do mundo.  Entretanto, ela estava iluminada, havia até mais coisas do que lembrávamos, como uma escultura de um Hamster com asas de morcego num pedestal. No papel embaixo do vidro estava escrito "Hamscego". Eu quase podia ouvir alguma explicação mal elaborada que Stan contava aos turistas curiosos.  
 
"Este é um morcego que após comer um hamster mutante, foi comido de dentro para fora, assumindo essa forma... Não toquem nele, crianças catarrentas" 
 
Sim, com certeza seria algo como isso.  
 
– Soos? – arrisquei em chamá-lo. Nem um barulho, fiquei atento para caso ouvisse alguma coisa, mas ao que tudo indicava, a loja estava vazia – Wendy...?  
 
Crock 
 
Mabel e eu trocamos olhares cúmplices, o som pareceu ter vindo de algum canto da loja, mas não identificamos exatamente onde.  
 
O som se repetiu desta vez mais alto.  
 
Vinha de uma catacumba egípcia. Ela se mexeu para o lado, balançando, como se o lugar fosse apertado demais para a coisa que estivesse tentando sair.  Mas não deveria ser real, não é? Ford não deixaria que Stan pusesse monstros de verdade à venda, certo...?  
 
Engoli em seco. 
 
Fazia tanto tempo que a possibilidade de enfrentar monstros era uma ideia vaga, que quando esse desejo deixava de ser apenas um desejo para se tornar algo real... eu não sabia o que fazer.  
 
– Dipper... – minha irmã sussurrou, ela parecia estar preocupada, mas eu sabia que estava tão ansiosa quanto eu – Dipper...! – sussurrou mais uma vez e só então eu entendi o porquê de ela estar me chamando.  
 
Eu estava a um braço de distância da coisa, distância esta que acabou, pois minha mão estava apoiada no caixão prestes a abri-lo.  
 
Quando eu me aproximei tanto?  
 
Ignorei minha preocupação e preferi dar ouvidos ao meu lado aventureiro. O caixão balançou mais uma vez.  
 
Engoli a seco mais uma vez e ao invés de dar atenção à Mabel, eu o abri, não por inteiro apenas uma parte que permitiu um feixe de luz entrasse.  
 
O que quer que estivesse lá dentro começou a emitir um resmungo com a garganta. Minha irmã segurou o grito e eu fiz o mesmo, pronto para acertar a suposta múmia com a primeira coisa que minhas mãos alcançassem.  Ficamos observando enquanto o que quer que houvesse dentro, empurrava o resto da tampa para sair. 
 
O resmungo ficou mais alto e à medida que ele aumentava, o nosso receio crescia junto. Até que o barulho se transformou numa tosse arranhada quando o bicho se demonstrou por inteiro e...  
 
– Soos...? – grunhi ainda sem entender direito o que havia acontecido.    
 
Ele terminou de tossir.
 
– Eae, galerinha! Nossa, achei que fosse morrer aqui dentro, tipo, vocês literalmente acabaram de salvar minha vida.  
 
– Ah... – nossa decepção era aparente. 
 
Contudo, Mabel pareceu raciocinar mais rápido que eu. A garota correu para abraçá-lo e gritou um: Soos!  
 
– Faz tanto tempo desde a última vez! – ela o soltou. 
 
Soos concordou.  
 
– Vocês estão tão grandes que eu quase não os reconheci. Já fazem três anos, não?  
 
Ele tinha razão. Havíamos crescido consideravelmente desde a última vez, mas ele ainda era maior que nós por o quê? 10 centímetros?  
 
– Lembra quando o Dipper era menor que eu? – Mabel não conteve uma risada.  
 
– Para, era apenas um único centímetro! Agora são cinco, tampinha. – ela rolou os olhos.  
 
Rimos da provocação.

Houve um tempo que Mabel estava de fato crescendo mais rápido que eu; esse um centímetro se transformou em três e eu não sabia mais o que fazer, aceitar que eu seria menor que a minha irmã estava fora de cogitação. Para a minha sorte, num certo período dos meus catorze anos, a puberdade bateu na minha porta e eu cresci tão rápido que a distância de tamanho acabou num piscar de olhos. Não demorou nada para que eu começasse a ficar ainda maior que ela.

Embora Mabel tentasse me acompanhar, ganhando mais dois centímetros, não foi o suficiente.
 
O grandão e eu trocamos um high five antes de eu perguntar: 
 
– O que você estava fazendo lá dentro?  
 
– Oh, cara, o Stan viu isso daqui ontem numa loja de penhores e trouxe pra cá. Fiquei curioso sobre o que tinha aqui dentro, e quando eu vi, acabei preso. – explicou.  
 
– Encontrou alguma coisa? – foi à vez de Mabel questionar.  
 
– Achei esse carinha aqui dentro. – puxou de lá de dentro ossos, remendados por faixas amareladas, que restaram de um corpo e trocou um "toca aqui" com ele – Maneiro. 
 
Quase levei um susto pelo corpo, mas a etiqueta que balançava em seu pulso, poupou um vexame.  
 
– E a Wendy? Ela também está presa em alguma catacumba? – brinquei.  
 
Ele fez uma expressão confusa.  
 
– Não ficaram sabendo? A Wendy não trabalha aqui já faz mais de um ano. – seu anúncio nos deixou confuso.  
 
Não parecia haver motivo para que Wendy deixasse a loja, ela curtia o lugar e nunca deu razão para ser demitida. Isso não fazia sentido.  
 
– Por quê? – Mabel perguntou tão confusa quanto eu.  
 
– Não sei direito qual foi o rolo, mas depois do que o Bill fez, o pai dela não quis mais que ela ficasse perto desses lances místicos, tá ligado? Na verdade, a cidade inteira pirou, maninhos.  
 
– O que você quer dizer com "a cidade inteira pirou"? – seu dito me intrigou.  
 
– Olha, tudo bem que vocês foram embora há muito tempo, mas não tão ligados da merda que tá rolando aqui? O Stan não contou pra vocês?  
 
– Ele disse que a gente iria entender quando visse.  
 
– Então acho melhor vocês darem uma volta por aí, as coisas estão bem bizarras, principalmente depois que aquele demônio... – ele parou de falar.  
 
– Depois que aquele demônio o quê? – não resisti em perguntar. 
 
Eu sabia que havia mais alguma coisa ali, algo me dizia que sim, e se Bill estava envolvido com isso... eu não sabia o que fazer.  
 
– Vão falar com o Stan, preciso varrer o resto da loja e estou bem atrasado desde que fiquei preso. Mais uma vez, valeu carinhas – e ele foi até o fundo da loja à procura de sua vassoura.

Fiquei paralisado. Ele estava ali. Bill havia voltado e com ele, meus pesadelos também.  
 
Apenas com o saber de que aquele monstro estava em Gravity Falls mexia comigo.  Senti aos pouco minha garganta fechar, aquele aperto sufocante no meu estômago... Bill...  
 
– Dipper...? – Mabel perguntou tão precavida como antes, percebi em sua voz o medo que ela sentia.  
 
Não, eu não podia deixar que esse sentimento ruim tomasse conta de mim mais uma vez, não na frente de Mabel.  
 
Respira...  
 
– Oi? Desculpa, acabei ficando fora de órbita – fingi uma risada para não preocupá-la.  
 
Obviamente, não colou. Mas eu notei seu esforço para não questionar e engolir a minha mentira. Ela sorriu minimamente.  
 
– Precisamos arrumar nossas coisas, não é? – Sua voz soou precavida,  como se tentasse me distrair – Vamos fazer isso rápido, bro-bro! 
 
– Não acha que é melhor falarmos com o tivô Stan primeiro? – procurei não deixar tão óbvio o meu planejamento por trás disso. 
 
Ela franziu o cenho em forma de negação. Ah, mas o que eu poderia fazer? Mesmo que todos os meus poros gritassem para que eu fugisse dali para o mais longe possível, eu não conseguiria. Como poderia? Bill deixou de ser um querer, para se tornar um dever na nossa vida faz tempo e nós devíamos acabar com o que quer que ele estivesse tramando.  
 
– Por favor...? – foi a minha vez de juntar minhas palmas em frente ao rosto para implorar a ela.  
 
Parece que os papéis haviam se invertido, não?

Ela suspirou.
 
No segundo seguinte, estávamos procurando por nosso tivô. Como ele já não estava em frente à cabana quando passamos por ela para chegarmos à loja, ele só poderia estar do lado de dentro.  O encontramos na cozinha fazendo um lanche, aparentemente para maratonar alguma de suas novelas. Ele estava terminando de colocar cheedar em seus nachos. 
 
– Se querem saber sobre a cidade, é só irem lá, ué – respondeu assim que perguntamos sobre o assunto, lambendo os dedos cheios de queijo – Não entendo qual o problema. 
 
Mabel e eu nos entreolhamos, achávamos que ele fosse nos dar alguma dica ou coisa assim. Ao menos alguma informação útil para nos prepararmos antes de ir, mas pelo jeito, isso não aconteceu. 
 
– Não há nada que precisamos saber? – a garota insistiu.  
 
– Não falem com estranhos...? 
 
Bufei, quase desistindo daquele homem, era como se ele estivesse evitando tocar no assunto.  
 
– Não o culpem, crianças, está sendo duro pra todo mundo. – era Ford.  
 
Dessa vez, ele quem teve que aguentar o abraço de Mabel. 
 
– Cuidado, estou ficando velho. – ele brincou um pouco, tirando algumas risadas nossas. 
 
– Parece que o espertalhão voltou... – Stan resmungou.  
 
– Sabe que estou dizendo a verdade, Stanley. – Ford fez questão de respondê-lo – Mas como eu estava dizendo, as pessoas estão recusando a existência de seres místicos. Desde a confusão causada há alguns anos, demorou um tempo para que a cidade se reestabelecesse, e quando isso aconteceu, criaram uma lei para não comentar sobre o ocorrido, então tenham cuidado para o que vão dizer por aí.  
 
– E o que... Bill tem a ver com isso? – arrisquei em perguntar, o que fez minha irmã olhar-me de soslaio. Claro que eu sabia que o demônio tinha tudo a ver com aquilo, mas o que eu realmente queria saber era sobre o seu envolvimento atual – Digo, ele está aqui na cidade, não  é? 
 
Ford se calou. Seu silêncio durou tanto tempo que eu duvidei que ele fosse me responder. Abri minha boca para quebrar aquele silêncio deveras constrangedor, quando o Dono da Verdade decidiu me responder.  
 
– É... complicado...  
 
– Complicado como? Ele está por aí estragando a vida de todo como sempre faz, precisa apenas nos dizer quais são os planos dele! – insisti, eu tinha noção que estava perdendo a paciência por uma coisa besta, mas qual é?  
 
– Como eu disse, as coisas estão complicadas... – calou-se mais uma vez, mas eu estava cansado de tanto silêncio.  
 
– Qual o problema? Por que não podem apenas me dizer? Pra quê tanto suspense? Aquela coisa está à solta por aí e vocês não estão fazendo nada?!  
 
– Dipper... – pela vigésima vez naquele mesmo dia, Mabel me chamou com aquele tom de voz preocupado de quem tenta alertar. 
 
– Depois conversamos sobre isso, acho melhor vocês verem com os próprios olhos... – arrumou os óculos.  
 
Estalei a língua em desistência.  
 
– Vamos logo para a cidade, Mabel. – decidi tomar a atitude que todos estavam querendo que eu fizesse naquele dia.  
 
Como Mabel não me seguiu de antemão, esperei do lado de fora e consegui captar um pouco da conversa deles.  
 
... seu irmão, ele... – parecia Ford ainda falando.  
 
Era óbvio que eles estariam falando sobre mim, mas eu ainda estava curioso sobre o que era. Eles falavam tão baixo quanto meus pais, logo, eu não entendi muito mais.  
 
Mabel parecia irritada com algo, ela apenas disse: 
 
... eu sei...! 
 
Afastei-me da porta quando ouvi seus passos se aproximando, mas ela não apareceu prontamente, o que me fez imaginar que alguém a fez parar.  
 
Mas que droga eu estava pensando? Já tinha passado tanto tempo e eu continuava a agir como a criança que eu sempre fui. Talvez a mamãe estivesse certa... 

Dipper sempre estragando tudo, acabei de chegar e já estou botando tudo a perder. Idiota, idiota que eu sou! 
 
Sou idiota por deixar aquele demônio mexer comigo, mas eu não conseguia... apenas, era tão difícil...  
 
Mabel abriu a porta e em meio de uma tentativa de fingir não estar surtando, ou quase chorando, eu sorri pra ela, mais um daqueles meus falsos. Ela o devolveu, um sorriso tão falso quanto o meu, em sua própria tentativa de esconder o que sentia.  
 
– Acho melhor a gente ir logo para a cidade, não é? – ela saltitou até chegar ao meu lado – Temos que impedir o Bill, certo, Dipper?

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⏰ Última atualização: Nov 17, 2018 ⏰

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