Prólogo

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A guerra nos fez frios.

Talvez pela rapidez com que os eventos catastróficos se empilham, assim como os corpos. Não nos deixando respirar, pouco menos sentir. Talvez porque sentimos tanto que nossos nervos não mais suportam, o limiar da dor se extrapola e quando caímos, não fazemos ideia do porquê.

Uma pequena voz surge em minha mente em momentos como esse... Momentos em que parece que o chão está me puxando e o ar quer fugir dos meus pulmões. Dizendo que essas são as consequências de qualquer batalha: perder algumas pessoas, experienciar sentimentos destrutivos, agir sem humanidade. Essa voz me ajuda a acreditar que não sou nenhum monstro - não mais que qualquer outro. Me ajuda a colocar o uniforme mais uma vez e continuar em frente.

Mas...

O olhar que ela me lançou destruiu cada fibra do meu corpo.

Parecia não poder absorver o que estava acontecendo, enquanto seus joelhos cediam contra o chão. Foi quando minha gravidade pareceu mudar e perdi todo o foco.

- Não, não, não - puxei o Colt 1911 antigo do meu pai e descarreguei meu desespero contra o soldado. Todas as minhas balas. Oito tiros. E, então, corri os dois metros que nos separavam.

Ela levantou os dedos até a altura dos olhos, registrando-os sujos de sangue, o rosto inexpressivo. Toda sua blusa estava sendo tomada, como tinta espalhando-se em água. Preta como nanquim. As veias sob seus olhos até suas têmporas estavam escuras; uma máscara que me foi tão difícil de aceitar, que me assustava tanto quanto deveria atormentar nossos inimigos.

Mesmo sob aquele estado, era mais humana que eu.

A floresta em volta ardia, o helicóptero que ela derrubara espalhava chamas pelas folhas secas. Peguei-a no colo, não era lugar para morrer.

Nenhum lugar servia para...

O grito de dor preencheu o ambiente.

- Rob, você precisa ir! - tentava me empurrar, sujando meu uniforme com mais um tom. - Não há nada que possa fazer agora.

- Não fale isso. - tremi.

Vagarosamente, seu rosto assumia uma expressão de profundo entendimento da situação. Não parecia me culpar. Cada célula dela sabia o que estava por vir e, mesmo assim, não parecia preocupada. Meus pensamentos tentavam se agarrar a explicações lógicas de que talvez a adrenalina fosse tanta que ela nem mais sentia.

Não levei-a por mais de vinte metros. O corte profundo em minha coxa impediu-me de continuar. Nunca me senti tão fraco. Ou inútil.

Minha garganta fechou; parecia queimar, impedindo qualquer ar de entrar ou sair demais. Temia que se eu respirasse, a dor seria pior. Ficaria mais viva, se espalharia com mais rapidez por minhas estranhas. Como acontecia com o fogo e a tudo em volta.

- Porque fez isso?! - urrei, saltando nesse abismo, puxando-a para mim com toda minha força, enquanto nos deixava cair contra o chão.

O desamparo era enorme.

Em dias normais, ela me desprezaria. Jogando todos os meus erros contra minha cara com um simples olhar, sempre distante.

- O que sua mãe diria se... - abafei-a contra meu peito. Não queria escutar qualquer palavra que viesse a se incrustar em meu cérebro, virando pesadelos à noite.

Covarde.

Tentei impedir o soluço, mas... Eu nem sabia que tinha me deixado chorar.

Não achei que doeria tanto perdê-la. Eu tinha certeza que estaria pronto caso acontecesse, ela se destacava na multidão como um alvo, fez-se importante demais para não ser uma peça desejada pelo outro lado. Rondavam-na como abutres.

- O que eu faço? - não sei explicar o sentimento que começava a me consumir, era mais que agonia; enraizado demais no meu peito, impedindo-me até de me mexer.

Ela sabia o que eu perguntava.

Apenas me observou com o rosto bondoso, as veias perdendo a cor horrenda. Era melhor, entretanto, que permanecessem. O branco sem vida me parecia determinante demais, irrefreável.

Um sorriso tremulou em seus lábios.

- Não sei. Nunca cheguei até aqui. - estava arfando agora, buscando fôlego inutilmente. Consigo ouvir sua respiração molhada, o sopro. Encostou a testa na minha. - Em outra realidade, talvez...

Não pode continuar.

Ela tentou me dizer que não conseguiria encarar minha mãe se fosse eu. Se os tiros tivessem atingido a mim. Mas como diabos eu diria a todos que a perdemos?

O grito de frustração fugiu do controle, aumentando quando ela fechou os olhos e não mais abriu. Logo em seguida, eu era raiva.

E, depois, pela primeira vez: luto.

O braço direito de Ian ConnanWhere stories live. Discover now