Capítulo Único

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03/01/2016, 00:40. Munique, Alemanha.

   Um garoto moreno de olhos tristes adentra numa sala escura. Sentado no banco da sala, há outro garoto, esse um pouco mais baixo que o outro, com os olhos suavemente infantis e cabelo cor de Sol. O moreno se senta ao lado dele. Os dois encaram o quadro em sua frente: Doze Girassóis Numa Jarra, de Vicente Van Gogh. Era de madrugada, o museu já havia fechado para visitas do público. Dois adolescentes descontrolados invadiram de noite.
  
  “Eu amo Van Gogh”
   
   Heiko encarou o menino de cabelo cor de Sol. Tom o encarou de volta, com um olhar confuso. Não, ele nunca o entendeu e nunca entenderia. Sempre o olhava com confusão, como quem olha para um quadro aparentemente sem noção ou para alguém louco. Mas naquela noite, Tom estava determinado a juntar as peças bagunçadas de Heiko em alguma coisa que fizesse sentido.

    “O meu quadro preferido é Noite Estrelada, porque você pode ver em cada pincelada a dor que ele sentia e o quanto ele estava enlouquecendo”, Heiko falou. Era um amante da arte, e como tinha pais ricos, já havia tido a oportunidade de ir em museus famosos e ver de perto obras maravilhosas. Van Gogh era de longe seu artista preferido, tanto pela seu trabalho quanto pela sua história.

     “Eu não entendo porque você ama tanto a tristeza. Parece que você vê beleza em tudo que é deprimente.”, Tom respondeu.

    “Não é porque você é raso e não se interessa por coisas que desafiem sua profundidade de uma colher de chá que essas coisas são ruins.”, Heiko quase cuspiu a resposta. Às vezes sua arrogância transbordava.

   O outro se calou, não tão surpreso com a grosseria gratuita.
 
   “Me desculpe. A grosseria foi desnecessária. Mas você deveria... parar de pensar nessas coisas apenas como fruto de melancolia e prestar mais atenção no que elas querem dizer. A vida é triste. A arte é só o resultado disso”.
 
   A resposta dele fazia sentido, mas mesmo assim Tom não entendia porque ele era obcecado em depreciar todas as coisas que via.

   “Dentro de mim”, o moreno falou depois de um curto silencio, “existe só preto. Eu nunca fui feliz. Eu sempre fui assim, eu sempre andei cabisbaixo e meu sorriso sempre foi imperceptível. Eu nunca tive uma luz em mim, Tom. Nunca. Até... ah. Até eu te conhecer.”
  
   Tom arregalou os olhos, boquiaberto. O que ele queria dizer?
 
   “Olha, eu sei que isso parece estranho. Mas eu te amo, tipo, pra caralho. Eu gosto de seu cabelo loiro claro e da sua risada e até mesmo do som da sua respiração. Eu sei que pra você eu não faço sentido, na verdade, não faço sentido nem pra mim mesmo. Eu sou um caos. Mas você? Você é perfeito. Tudo em você se encaixa e se completa, e é disso que eu gosto. Gosto do fato de você ser suave e gentil e gosto de como você tem luz saindo de todos os seus poros. Isso me dá motivo pra sorrir e tentar me iluminar também.”

   Uau. Era a única palavra que Tom conseguia pensar. Ele olhou para Heiko e o analisou. Não tinha cara de quem estivesse brincando.

   Um arrepio subiu pela sua nuca. Turbilhões de pensamentos passavam pela sua cabeça, e surpreendentemente, nenhum deles incluía dizer a Heiko que não se sentia do mesmo jeito ou que aquilo era estranho e errado. Ele era estranho, depressivo e arrogante? Sim, ele era. Mas ele também era protetor e amável quando queria. Quando ele estava com Tom, todas as outras pessoas pareciam ser meras figurantes da história dos dois. Todo o universo parecia se fechar para abrigar os dois e apenas. Mas ele nunca havia percebido que se sentia dessa maneira até a declaração que acabara de receber.

   “Fala alguma coisa. Por favor.”, o moreno falou.
 
   Tom não sabia o que falar. Seu corpo tremia e suava frio. Seu cérebro estava extremamente acelerado. Seus músculos estavam se contraindo.
 
   Então ele sentiu os lábios de Heiko sobre os seus. Sentiu as mãos dele em sua nuca e sentiu correntes elétricas em sua pele.
 
   Eles não pararam de se beijar, até alguém entrar na sala. Era um homem magro de meia ideia, aparentemente careca, usando um uniforme de segurança .
 
   “Ah, meu Deus", disse ele, “são só adolescentes hormonais. Escutem, filhos, eu chamei a polícia porque achei que algum ladrão tivesse invadido. Esse é um museu altamente respeitado e seguro, então a polícia aqui ia pegar meio mal, sabe? Se vocês forem embora agora, eu ligo pra eles e digo que foi alarme falso.”
 
   Eles se levantaram de imediato. Pediram desculpas pelo transtorno e saíram. Ficaram deitados no gramado do lado de fora olhando pras estrelas. Passava de uma da manhã e a noite estava linda.
 
   Tom finalmente havia entendido Heiko. Ele havia juntado todas as suas peças enquanto o beijava.
* * *
31/12/2017, 20:00.
 
   A garota ruiva beijava Heiko com pressa. Os quadris dos dois se movimentavam juntos, as mãos dele desciam pelas costas dela. Eles estavam quase tirando as roupas quando a campainha tocou.
 
   Ele pediu desculpas e se levantou pra abrir. Quando viu quem estava do outro lado, seu coração quase parou. Os mesmos olhos juvenis, o cabelo loiro claro um pouco mais bagunçado que de costume, uma rala barba começando a crescer e um corpo bem mais forte. Tom mudara um pouco desde a última vez que eles haviam se visto, mas continuava com a mesma luz que Heiko se lembrava.
 
   “Oi!”, o loiro cumprimentou sorrindo, mas o sorriso sumiu quando viu a garota no sofá de Heiko. “Ah. Você tem visitas.”

    “Ah, não. Na verdade, Barbara já estava de saída. Não é, Barbara?”

    Ela olhou de cara feia para o moreno, mas ajeitou sua blusa e cabelo e saiu sem se despedir.

    “Ela é sua namorada?”, Tom perguntou com um leve sinal de desapontamento na voz.

    “Quem, Barbara? Não, não, ela é só... uma menina qualquer.”

    “Uau. Você continua arrogante.”
 
    Heiko riu.

  “Um pouco. Caraca, você também não mudou muito. Mas você tá mais... gostoso.”

    Isso fez Tom corar até ficar da cor de um tomate maduro. A indiscrição do ex era uma característica boa em determinados momentos, mas às vezes passava dos limites. Como tudo que ele fazia. A existência dele já era uma completa violação dos limites.

   “Como estão as coisas em Berlim?”, o moreno falou, rindo da reação do outro.

    “Não muito boas. Eu sinto falta daqui. Das coisas. Lá é... lá é bom e eu conheci pessoas legais, mas eu amo essa cidade. E eu sinto sua falta.”

   Aquilo atingiu Heiko de um jeito que ele não soube descrever. Ele e Tom haviam se amado, transado pra cacete, brigado até saírem no soco e vivido intensamente por oito meses até Tom se mudar para Berlim. Aquilo o destruiu por um tempo. Ele o amava de um jeito que nunca tinha amado ninguém, e sentia saudade dele todos os dias. Haviam perdido o contato no período em que Tom morara lá pelo fato de que os dois se machucariam num relacionamento a distância, sendo amizade ou namoro.
 
   “Eu também. Senti muito a sua.”

    Eles se encararam em silêncio.
 
   “Você vai ficar aqui até quando?”, Heiko perguntou depois de um longo silêncio.

   “Até o fim de janeiro.”
 
  “Ah. Que bom. Onde você vai passar a virada?”
 
  “Ah... com a família e essas coisas.”

   “Você não quer passar comigo não? Eu não vou a lugar algum se você passar essa noite comigo.”

    Tom sorriu.
 
   “Eu adoraria.”

                                 * * *
29/01/2018, 15:40.

    Eles se olharam com lágrimas. Tom estava retornando para Berlim dali à vinte minutos.
 
   “Me solta", disse Tom, “eu tenho que ir pro portão.”
 
   “Eu sei. Eu sei.”
 
   Se despediram. Heiko não poderia ficar até o embarque de Tom.
 
   Cada um carregava um peso dentro de si: eles haviam mudado ao outro pra sempre. Talvez eles não se vissem mais. Talvez o mundo separasse eles. Mas de qualquer forma, todas as vezes que se reecontrassem seria como se apaixonar pela primeira vez.
 
    Tom aprendera a gostar da melancolia e das trevas de Heiko. E Heiko sabia que Tom era a única pessoa que sabia colocar todos os pedaços quebrados dele no lugar

    No coração de Heiko, Tom nunca iria embora.

 

doze girassóis numa jarraOnde histórias criam vida. Descubra agora