Prólogo

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Niterói, 1851

O chicote era de montaria, mas servia ao propósito para o qual havia sido pego.

As botas negras de couro recém-lustradas riscavam o chão de madeira com o caminhar pesado, pisoteavam algumas pétalas de flores que haviam caído dos arranjos, vagavam atrás da presa que se escondia em algum lugar escuro e distante dos olhos claríssimos do predador.

O menino não poderia ir muito longe, tinha que ficar perto para que conseguisse enxergar para onde as botas se encaminhavam e poder calcular o tempo para correr em outra direção. Até que pararam. Tão perto que o menino achou se ver refletido no couro. Segurou a respiração e cobriu boca e nariz com as mãos para que não fosse ouvido.

-Onde você está, moleque? Onde? Venha cá! – a voz estalava na boca com um tom meloso de quem havia bebido – Venha cá para ver o que acontece com meninos desobedientes! Desta vez, vou lhe dar uma lição que você nunca mais irá se esquecer! Não tem mais a sua mãe aqui para salvar você. Somos apenas você e eu agora, você vai aprender a me respeitar!

Sua mãe nem esfriara dentro do esquife e o pai já havia virado uma garrafa de bebida e pego o chicote para lidar com a própria dor através do único filho. Talvez fosse o sofrimento falando, ou o álcool, duvidava que o pai fosse ruim.

Pelo pouco que se lembrava do início da sua vida, seu pai não era tão cruel e ríspido. Gaúcho de brios fortes, Genemário veio com a família a pedido da prima-irmã, D. Maria Joaquina, esposa de Irineu Evangelista de Souza – o futuro Barão de Mauá. Diziam que era para ajudar na obra da família, o Estaleiro da Ponta da Areia, porém todos sabiam que era para afastá-lo da amante e das condições degradantes de quem gastava o dinheiro da estância da família em festas e bebidas.

As coisas pareciam ir bem. Genemário havia parado de beber e tentava se dedicar ao trabalho no estaleiro e D. Lísia cuidava do filho Eduardo e da pequena casa que os primos haviam mandado construir para eles, próximo à empresa. Contudo, a doença repentina da esposa e as constantes discussões com Irineu foram tirando a vontade de se manter sóbrio e, em menos de um ano, Genemário podia ser encontrado caído na rua, à porta de algum bar. Entre um copo e outro, acusava Irineu de fazê-lo sentir-se diminuído perto do selfmademan. Justamente ele, filho de farroupilha, descendente de uma longa linhagem de honrados estancieiros, nada havia conseguido – e, novamente, todos tinham conhecimento de que era porque nunca havia lutado nem por um copo de vinho sequer.

D. Lísia, esta era bem diferente do marido. Carinhosa, educada e muito terna com todos, sempre a fazer cafuné na cabeça do filho para que adormecesse, cuidava com zelo da sua família e tinha uma ótima relação com os primos – a ponto de o casal Souza dar o seu nome para a filha mais velha. Era ela o esteio, a única dignidade da família, até a mão fria da tuberculose lhe alcançar. Foi o filho Eduardo quem notou a tosse insistente por detrás dos lencinhos de renda. "Não há de ser nada", ela lhe garantia num sorriso triste.

Eduardo era muito esperto, admirado por sua perspicácia e intelecto. A mãe via toda aquela capacidade como um problema, pois era incapaz de esconder os seus sofrimentos dos olhos claríssimos do filho pequeno, que lhe invadiam a alma. Todo dom vem com uma sobrecarga, pensava D. Lísia. Ela via que Eduardo não conseguia ser uma criança feliz, ignorante do mundo adulto e a viver dentro do universo imaginário infantil, e era o que mais a entristecia.

Desesperado com a possibilidade de perder a mãe, o menino alertara a prima Maria Joaquina. Nunca pensaria que sua atitude poderia causar mais desgastes do que soluções. Genemário achara que ele havia contado à família para, novamente, diminuí-lo e acusarem-no de que não cuidava da esposa. E teria batido no filho até quebrar o pulso se a mãe não tivesse o socorrido ao ouvir os primeiros gritos.

A BARONESA DESCALÇA (amostra do e-book)Where stories live. Discover now