A Fazenda Guaíba pertencia à família Feitosa de Vasconcellos desde tempos imemoriais – tão distantes que o próprio dono, o Sr. Caetano Feitosa de Vasconcellos, não se recordava desde quando, apesar de ter anotado em algum papel. Conhecida além dos limites de Vassouras, era famosa pela imensidão dos seus cafezais, subindo e descendo os montes, dos dois terreiros e da sua senzala que abrigava mais de mil escravos. Não era uma fazenda, diziam os vizinhos, era um complexo agrícola. Tinha mais de cem mil pés, que produziam um quinto de toda a produção de café do Império, e o que rendera ao Sr. Feitosa a honra da comenda de Imperial Ordem da Rosa e, anos mais tarde, o título de conde. A produção da Guaíba não se restringia somente ao café, havia ainda um engenho – resquícios da época em que a região era produtora de cana-de-açúcar – um gigantesco pasto com mais de cem rezes de leite e de corte, um haras para cavalos puro-sangue, e algumas plantações de subsistência. O Sr. Feitosa gostava de se gabar que, se houvesse uma guerra, mais terrível do que a recém-finita no Paraguai, e que se esta acabasse com o Império, ainda sim a Guaíba sobreviveria apenas com a própria produção.
Não estava totalmente errado. Sua renda se comparava à dos Teixeira Leite, dividindo com eles o título de família mais rica do Brasil e, possivelmente, do mundo.
Para a sua infelicidade – e para alguns, uma espécie de maldição pelo seu excesso de ganância –, os Feitosa não tiveram filhos varões. Tentaram, diversas vezes, contudo, foram apenas meninas: dez no total – das quais apenas sete sobreviveram à primeira infância. Teriam persistido se não fossem as complicações na última gravidez, que quase matara a Sra. Feitosa e o bebê.
As filhas possuíam não só o vigor dos Feitosa como a formosura da bisavó, Lavínia de Vasconcellos – uma das muitas amantes do Imperador Dom Pedro I, quem diziam ser o verdadeiro progenitor daquela linhagem e a origem de tanta terra.
Caetana, a mais velha, talvez fosse a que tinha a beleza mais tímida, o que combinava com a sua personalidade serena. Contrastava com a animada e garbosa Thaís que, desde pequena, dava trabalho aos pais com suas travessuras. Por fortuna, conseguiram casá-la cedo, aos 16 anos, antes que descobrisse "outro tipo de travessura". Dalva tinha a beleza mais ordinária e uma timidez excessiva, o que os pais achavam ter sido o motivo de ter entrado para o Convento da Ajuda, aos 15 anos. Rosária e Belizária, as gêmeas, eram parecidas não só no físico como no jeito, na maneira de se vestir e na de pensar – "Meu par de vasos", seu pai costumava chamá-las. Depois de várias tentativas abortadas, nasceu Lavínia. Aos 6 anos de idade, ela já mostrava que em nada devia a tal bisavó, de quem herdara o nome, os belíssimos cabelos loiros e a inteligência. Uma tentativa depois e veio, por fim, Felipa, a protegida, a que quase havia morrido com a mãe, se não fosse pela intervenção de uma parteira da região.
Ainda que tivessem uma propriedade invejável, uma condição financeira maravilhosa, dotes acima do regular, as Feitosa de Vasconcellos tinham dificuldade em arrumar pretendentes e ninguém sabia o porquê. O caso de Thaís havia sido anormal, pela rapidez em que tudo acontecera – desde que conhecera o rapaz, em quatro meses estava casada e partindo para a Europa – e o que levantou suspeitas de uma gravidez antes das bodas.
Os pais preparavam a viagem de Caetana, Rosária e Belizária para conseguirem pretendentes na França – onde Thaís morava –, quando a mais velha foi pedida em casamento pelo paulista Roberto Canto e Melo. Não houve problemas quanto ao valor do dote negociado e, muito menos, pela estirpe do filho de fazendeiros de Bananal. Tudo sairia como o pretendido e, quem sabe, surgisse daí um neto que poderia gerir a Guaíba?
Apesar do nome, que significava pântano ou brejo em tupi, a fazenda tinha uma das mais bonitas casas-grandes do distrito. Conhecida como "o casarão dos quatro pilares", sua fachada remontava à arquitetura helenística. Quatro pilares sustentavam as varandas com pé direito alto. Por dentro, todos os cômodos tinham afrescos de José Maria Villaronga nas paredes e tetos. Alguns, mais elaborados do que outros, como no vestíbulo de entrada e na sala de jantar, causavam o engano do trompe d'oeil com figuras tão bem desenhas e com tamanha profundidade, que pareciam ser de verdade. Os móveis também não poderiam deixar cair no gosto e requinte, nem a decoração com cortinas e reposteiros de veludo inglês, tapetes chineses, porcelana alemã, vasos de Sevrès, imensos quadros de molduras douradas e luminárias de cristal Baccarat.
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A BARONESA DESCALÇA (amostra do e-book)
Historical FictionVale do Paraíba, 1872. Saraus, bailes, rapazes, cavalgar e defender a abolição da escravatura, são estes os gostos da bela Amaia. Mas tudo parece perder sentido quando seus pais morrem e deixam nas suas mãos uma fazenda de café e um testamento que a...