Capítulo 2

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O caminho de volta para a cabana foi marcado por um silêncio sepulcral. Não era para menos, já que havíamos acabado de enterrar aquela mulher.

Sim, "havíamos". Não poderia deixar aquela garotinha ali, sozinha à própria sorte, no meio desse apocalipse gelado. Então a trouxe comigo. Ela, por outro lado, parecia extremamente amedrontada em seguir o último desejo de sua mãe. Não era para menos, sair com um estranho em meio ao apocalipse não era lá uma ideia muito animadora. Ainda mais quando se acaba de perder sua mãe. Mas naquele momento, eu era a única chance daquela garota sobreviver, e, mesmo com a pouca idade, ela também sabia disso.

Não irei mentir. A ideia de apenas fingir que nada disso tinha ocorrido, voltar para a cabana e terminar o que havia começado veio à minha mente. Ideia tentadora. Afinal, depois de morto, não me lembraria de nada daquilo. Mas as palavras daquela mulher, a promessa que ela me fez jurar, pairavam na minha mente a todo vapor.

Estávamos quase chegando à cabana. Até aquele instante, ninguém tinha dito absolutamente nada. Nem ao menos sabia seu nome. A única coisa que sabia é que, naquele momento, eu deveria estar morto, com uma bala encravada no meu crânio. Ao invés disso, estava bancando a babá com uma recém-órfã que vestia um casaco bem maior que ela e uma mochila nas costas, e carregando um pequeno urso marrom de pelúcia, o qual, até aquele instante, não tinha largado. Já estava anoitecendo, e estávamos andando muito devagar. Aquela garotinha estava nos atrasando com suas pernas pequenas, e, se mantivéssemos aquele ritmo, morreríamos de frio antes de chegarmos ao nosso destino. E ainda havia os lobos... ah, aqueles caninos desgraçados viviam andando em bandos, e se encontrássemos com um deles, certamente estaríamos em apuros, já que o único objeto que tinha para nos defender era a pistola, que continha apenas uma bala. Por sorte, pouco tempo depois, chegamos na cabana.

Já era noite, e sabia que, uma hora ou outra, precisaria quebrar o silêncio, que já durava uma eternidade.

— Foi um longo dia, deve estar com fome — disse, abrindo uma das últimas latas de sopa que havia achado no armário.

Mas ela apenas se limitou a colocar sua mochila no canto e se sentar em um dos sofás velhos e empoeirados, observando uma foto de um casal de idosos que estava na parede. Peguei uma tigela, dividi o conteúdo daquela lata em duas partes e me sentei ao lado dela, entregando-lhe a sopa. Com suas mãos, pegou a tigela e bebeu um pouco. Era a primeira vez que havia soltado aquele urso, percebi. Mesmo sabendo que aquela criança estava de luto, precisava descobrir o que realmente acontecera lá fora.

— Então... como se chama? — perguntei, tentando parecer forçadamente amigável.

— Joy. — disse ela, limpando o restante de sopa ao lado da boca.

"Ela disse alguma coisa. fizemos progresso", pensei comigo mesmo, já me preparando para continuar o pequeno interrogatório.

— Poderia me dizer o que aconteceu lá fora? Quem fez aquilo com vocês?

— Homens maus — respondeu ela com um tom triste. — Você é um homem mau? — perguntou Joy com um olhar de aflição, e se agarrando novamente ao bendito ursinho.

Travei. Simples assim. Não sei dizer se fiquei dessa maneira pela pergunta daquela pequena garotinha ou se pelo fato de realmente não saber responder. Com o apocalipse, a noção de certo e errado, bem e mal, eram relativos. Mas não era meu trabalho tentar explicar isso para ela.

— Não se preocupe, está segura aqui. Apenas quero saber o que aconteceu. — respondi, tentando acalmar as coisas.

— Tinham dois homens maus caminhando para perto de nós. Quando minha mãe percebeu, me mandou esconder nos arbustos. Acho que queriam nossa comida.

Quanto mais ela contava a história, mais ela apertava aquele ursinho. Seus olhos começaram a se encher de água, e sua voz gradualmente foi diminuindo.

— Mas nós não tínhamos muita comida. Às vezes, minha mãe ficava dias sem comer, mas sempre me dava um pedaço de pão ou um pouco de sopa fria. Mas um deles não acreditou e tentou puxar a mochila! Minha mãe não queria deixar, e ele...

Ela não conseguiu continuar a frase, era demais para aquela criança. Aquelas pequenas gotinhas de água nos olhos começaram a se transformar em uma torrente de lágrimas, que duraram até ela adormecer, ali mesmo no sofá. Não pude fazer nada, a não ser deixar acontecer. Um dos motivos pelos quais decidi nunca ser pai é porque não sei lidar com crianças. "Também não sei lidar com apocalipses, mas olha só onde estou agora", pensei, dando um sorriso desesperançado. Levantei-me, fui até um pequeno armário de duas portas onde havia guardado um cobertor e o coloquei sobre ela. Durante o apocalipse, as noites podem ser tão covardemente frias como aqueles saqueadores que fizeram isso tudo acontecer.

Sentado em uma cadeira da cozinha, à luz de um lampião, comecei a relembrar o que Joy havia me contado, e acabei me recordando que não perguntei para onde diabos elas estavam indo. Com o mundo congelando, ficar andando de um lado para o outro era praticamente suicídio. Suicídio. Acabei me lembrando que deveria estar morto naquele momento. Você descobre que chegou no fundo do poço quando não consegue nem se matar em um apocalipse. É triste e irônico, mas se, antes disso tudo, eu era um derrotado, um ninguém, depois de tudo ir à merda, continuo o mesmo inútil e incapaz. E, mesmo assim, o destino me delegou a missão de cuidar de uma criança. Desculpe destino, você escolheu o cara errado para essa missão.

Levantei-me da cadeira e fui fazer uma busca no armário da cozinha. Como tinha visto antes, aquela lata de sopa era a última do estoque. No momento, tínhamos três garrafas de água, um pouco de biscoitos e alguns pedaços de pão. Em outras palavras, não sobreviveríamos muito tempo ali. Estava prestes a me matar, não pensei que teria visitas naquele dia, e, mesmo que pensasse, não havia nenhum supermercado aberto nas proximidades.

Enquanto catalogava nossos suprimentos, bati o olho na pequena mochila que Joy havia carregado até aqui. Poderia haver alguma comida, remédios ou até mesmo água, o que nos ajudaria muito até encontrarmos uma comunidade. Caminhando devagar para não acordar a garotinha, que dormia num sono profundo com seu urso, peguei a mochila e comecei a procurar. Encontrei umas lanternas, uma blusa de frio azul, algumas fotos de Joy com a família e uma garrafa de água vazia. Mas nada de comida ou remédios. Quando abri o bolso lateral da mochila, encontrei um mapa da região.

Por curiosidade, abri aquele mapa e reparei que alguém havia marcado um "X" em uma das universidades situadas a algumas horas de distância. Conhecia aquele local, havia passado minha juventude estudando ali. Provavelmente era o destino delas. Poderiam estar utilizando aquele local como um refúgio para os sobreviventes, onde seria o lugar perfeito para deixar Joy e cumprir de vez aquela promessa.

Com alguma pressa, comecei a organizar e traçar todo o caminho até chegar no possível refúgio. Não seria uma viagem fácil, mas, daqui pouco tempo, poderia ficar completamente livre da minha promessa.

Estava tudo pronto. Partiríamos ao amanhecer.


A Promessa - Sobrevivendo Abaixo de Zero - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora