Dia

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No outro dia a tempestade ainda insistia em jogar-se contra o mundo, mas agora em uma escala bem menor. O frio ainda preenchia cada centímetro do cômodo em que os Peverell se abrigavam, congelando suas respirações, porém havia se tornado bem mais sutil agora que se encontravam há tanto tempo naquela situação.

— A tempestade deve parar até a tarde, se continuar nesse ritmo — Informou Antioch, bebendo seu whisky de fogo e fazendo uma careta para a queimação em sua garganta. - Sairemos assim que tivermos condições e despejaremos as cinzas de nosso pai no maldito rio.

— E depois disso? - Perguntou Ignotus, pegando um pão duro dos vários dispostos na frente deles.

— O desejo do velho acaba aqui. — Disse Antioch, dando de ombros.

— Então seguiremos cada um nosso caminho após isso?

Antioch afirmou com a cabeça, virando o copo em suas mãos e encostando na parede.

— E o que faremos com a garota? —  Cadmus indagou, o rosto contraído em uma careta de desgosto. — Tem apenas dez anos e nós somos sua única família viva. Tecnicamente somos responsáveis por ela.

— Poderíamos enviá-la para Hogwarts. — Ignotus sugeriu, sabendo que sua ideia prontamente seria recusada. Os outros dois irmãos não tinham desejos de deixar Elsta desenvolver suas habilidades, achavam que era uma perda de dinheiro pagar por seus estudos quando ela não sabia fazer nada além de choramingar pelos cantos. - Sabemos que ela receberá a carta em pouco tempo.

— Já tivemos essa conversa, Ignotus — Antioch resmungou, cansado demais para estender aquilo por muito tempo. - Ela não vai.

Elsta - que estava sentada a uns poucos metros dali -, fingia não escutar nada. Passava rapidamente as páginas de um livro que segurava entre as pernas, tomando cuidado para não deixar o barulho sobressair o da voz dos irmãos.

Não havia dormido durante toda noite, pondo seu plano em ação. Esperava que eles continuassem bebendo e conversando por tempo suficiente para não perceberem a troca que ela fizera. Por fora parecia que estava lendo um romance bruxo qualquer, mas qualquer um que olhasse o suficiente perceberia que seu conteúdo estava repleto dos mais diversos feitiços, prontos para ajudá-la em qualquer situação. E ela certamente precisaria de ajuda.

Finalmente achou o que tanto procurava, pondo seu dedo em cima do feitiço e sussurrando-o baixinho. Não teria como errar aquilo, era simples, mas precisaria acertar de primeira a forma como invocá-lo... Precisaria fazer isso sem uma varinha.

Todos os feitiços que Elsta havia praticado até agora eram sem varinha, até porque nenhum dos familiares, nem mesmo o pai, pareciam dispostos a dar uma varinha para a mesma, e ela também não tinha a força para os pedir isso. Contudo, agora era diferente. Ela não poderia errar. Errar significava uma vida pior do que tinha agora.

Errar poderia significar a morte.

A garota sacudiu a cabeça e guardou o livro, pronta para gastar as horas seguintes dormindo e espantando pensamentos daquele tipo de sua cabeça.

Os Peverell que permaneciam acordados, entretanto, continuaram a falar sobre ela. Cadmus sugeria que a matassem, mas nem Antioch nem Ignotus estavam prontos para ir tão longe. O mais velho, então, sugeriu que a abandonassem antes de cruzarem o rio; eles poderiam usar magia assim que despejassem as cinzas do falecido naquelas águas e sumir não seria tão difícil. A sugestão foi bem recebida por Cadmus, mas Ignotus parecia ainda um pouco relutante.

— Ela só tem onze anos... Como vocês se sentiriam ao serem abandonados por sua única família? — Ele insistiu, sacudindo a cabeça.

— Então você se oferece para tomar conta dela? — Antioch perguntou, sério.

Os dois irmãos mais velhos o encararam enquanto ele engolia em seco, desviando o olhar. Sabiam que Ignotus, assim como os outros, nunca apreciara muito a mais nova, mas seu espírito era o mais próximo da bondade entre os três Peverell legítimos.

— Iremos decidir na hora — Ignotus disse por fim, sentindo a derrota e a bebida o cansarem.

A hora, entretanto, chegou mais cedo do que esperavam, e nenhum dos três parecia saber muito bem o que fazer a respeito da menor. Ela, todavia, andava mais tranquila do que nunca estivera ao lado deles, tendo até que adotar o semblante deprimido que a acompanhou durante toda a viagem até ali. Pela primeira vez na vida Elsta sabia o que fazer, e faria sem medo.

Os outros três, por sorte, não prestavam atenção o suficiente nela para notarem qualquer diferença; seguiam os quatro a grande estrada - agora visível, mesmo que um tanto coberta de neve - para o rio escolhido por seu pai.

Diotto Peverell foi igualmente mediano em todos os títulos que recebera na vida. Foi um pai mediano, um marido (duas vezes) mediano e um bruxo ainda mais mediano, mas mesmo assim ele viveu e deixou sua marca em forma de prole naquele mundo, que agora carregavam suas cinzas em cumprimento do seu último desejo

— Quando eu morrer — Dizia ele, desde que Elsta se entendia por gente — , quero minhas cinzas jogadas nesse rio. — E então apontava para o pequeno traço que o indicava no mapa. Rindo, ele continuava: — Sim, é aqui que eu quero. Carregado por meus filhos em uma jornada sem magia. Isso é algo que eu gostaria de ver!

Nenhum dos quatro herdeiros levavam-no a sério quando ele começava com a falatória, e continuaram sem dar atenção até que o pai fizera o mais velho de seus filhos jurar em voto perpétuo que cumpriria esse desejo. Apenas quando viram Antioch ajoelhar-se em frente ao velho Peverell e apertar sua mão, quando Ignotus selara o contrato e Diotto sorriu-lhes como se vencesse algo que não poderiam imaginar, só então perceberam que aquele desejo deveria ser levado a sério.

E agora, no final daquela aventura que já durava quase dois dias estavam todos esgotados demais para se importarem com o luto, famintos por comida decente e as boas camas de suas casas. Quando viram o rio tampouco pensaram em seu falecido pai, o que vinha em suas mentes exaustas era o desejo de acabar de uma vez por todas com aquilo e seguir a vida.

Obviamente ainda tinham o "problema Elsta" para resolver, mas sabiam que se seguissem o fluxo as coisas iam se resolver naturalmente. Ou pelo menos esperavam.

Secretamente Antioch e Cadmus esperassem que a compaixão de Ignotus falasse mais alto que a razão e ele levasse por fim e garota, e até mesmo o próprio Ignotus não confiava em si mesmo o suficiente para negar aquela possibilidade; eles apenas não esperavam que Elsta tivesse seus próprios planos.

O clima de expectativa pesava sobre os quatro viajantes que cortavam a neve ao crepúsculo. Todos os quatro com motivos diferentes, mas com um objetivo em comum: ver-se livre dos outros.

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⏰ Last updated: Aug 31, 2018 ⏰

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A Quarta PeverellWhere stories live. Discover now