Texto 3

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O Contrato - Tati Bernadi.

"Combinamos que não era amor. Escapou ali um abraço no meio do escuro. Mas aquilo ali foi o sono, não sei o que foi aquilo. Foi a inércia do amor que está no ar, mas não necessariamente dentro de nós. A gente foi ao cinema, coisas que namorados fazem. Mas amigos fazem também, não? Somos amigos. Escapou ali um beijo na orelha e uma mão que quis esquentar a outra. Mas a gente correu pra fazer piadinha sexual disso, como sempre. Ai teve aquela cena também. De quando eu fui te dar tchau só com a manta branca e o cabelo todo bagunçado. E você olhou do elevador e me perguntou: não estou esquecendo de nada? E eu quis gritar: está, está esquecendo de mim. E você depois perguntou: não tem nada meu ai? E eu quis gritar: tem, tem eu.
Eu sempre fui sua. Eu já era sua antes mesmo de saber que você um dia iria me querer. Mas a gente combinou que não era amor. Você abriu minha água com gás predileta e meu sabonete de manteiga e cacau. E fuçou todas as minhas gavetas enquanto eu tomava banho. E cheirou meu travesseiro pra saber se ainda tinha seu cheiro. Ou pra tentar lembrar meu cheiro e ver se ele ainda te deixa sem vontade de ir embora. Mas ainda assim, não somos íntimos. Nada disso. Só estamos aqui, reunidos nesse momento, porque temos duas coisas muito simples em comum: nada melhor para fazer. Só isso. É o que está no contrato. E eu assino embaixo. Melhor assim. Muito melhor assim. Tô super bem com tudo isso. Nossa, nunca estive melhor. Mas não faz isso. Não me olha assim e diz que vai refazer o contrato. Não faz o mundo inteiro brilhar mais porque você é bobo. Não faz o mundo inteiro ficar pequeno só porque o seu chapéu é muito legal. Não deixa eu assim, deslizando pelas paredes do chuveiro de tanto rir porque seu cabelo fica ridículo molhado. Não faz a piada do vampiro só porque você achou que eu estava em dias estranhos. Não transforma assim o mundo em um lugar mais fácil e melhor de se viver. Não faz eu ser assim tão absurdamente feliz só porque tenho a certeza absoluta que nenhum segundo ao seu lado é por acaso.
Combinamos de que não era amor e realmente não é. Mas esse algo que é, é realmente muito libertador. Porque quando você está aqui, ou até mesmo na tua ausência, o resto todo vira uma grande comédia. E aquele cara mais novo, e aquele outro mais velho, e aquele outro que escreve, e aquele outro que faz filme, e aquele outro que divertido, e aquele outro da festa, e aquele outro amigo daquele outro. E todos aqueles outros viram formiguinhas de nariz vermelho. E eu tenho vontade de ligar pra todos eles e falar: putz, cara, e você acha mesmo que eu gostei de você? Coitado. Adoro como o mundo fica coitado, fica quase, fica de mentira, quando não é você. Porque esses coitados todos só serviram pra me lembrar o quão sagrado é não querer tomad banho depois. O quão sagrado é ser absurdamente feliz mesmo sabendo a dor que vem depois. O quão sagrado é ver pureza em tudo o que você faz, ainda que você faça tudo sendo um grande safado. O quão sagrado é abrir mão de evoluir só porque andar pra trás é poder cruzar com você de novo. Não é amor não. É mais que isso, é mais que amor. Porque pra te amar mais, eu tenho que te amar menos. Porque pra morrer de amor por você, eu tive que não morrer. Porque pra ter você por perto um pouco, eu tive que não querer mais você por perto pra sempre. E eu só soquei meu coração até ele diminuir. Só pra você não se assustar com o tamanho. E eu tive que me fantasiar de puta, só pra ter você aqui dentro sem medo. Medo de destruir mais uma vez esse amor tão santo, tão virgem. E eu vou continuar me fantasiando de não amor, só pra você poder me vestir e sair por aí com a sua casca de não amor. E eu vou rir quando você me contar das suas meninas, e vou continuar dizendo "bonito carro, boa balada, boa ideia, bonita cor, bonito sapato". E eu vou continuar sendo só daqui pra fora. Porque no nosso contrato, tomamos cuidado em escrever com letras maiúsculas: não existe ninguém aqui dentro. Mas quando, de vez em quando, o seu ninguém colocar ali, meio sem querer, a mão no meu joelho, só pra me enganar que você é o meu dono. Só pra enganar o cara da mesa ao lado que você é o meu dono. Eu vou deixar. Vai que um dia você acredita." ❤

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