CONTINUAÇÃO III

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Trata-se portanto de investigar primeiro quais são ou quais foram, dentre os elementos dessa peculiaridade das confissões, aqueles que atuaram e em parte ainda atuam na direção acima
indicada. Ora, numa consideração superficial feita a partir de certas impressões modernas, poderíamos cair na tentação de formular assim essa oposição; que o maior “estranhamento do mundo”
próprio do catolicismo, os traços ascéticos que os seus mais elevados ideais apresentam, deveriam educar os seus fiéis a uma indiferença maior pelos bens deste mundo. Esse modo de explicar as coisas corresponde de fato ao esquema de julgamento popularmente
difundido nas duas confissões. Do lado protestante, utiliza-se essa
concepção para criticar aqueles ideais ascéticos (reais ou supostos) da conduta de vida católica; do lado católico, replica-se com a acusação de “materialismo”, o qual seria a conseqüência da secularização de todos os conteúdos da vida pelo protestantismo.
Também um escritor moderno houve por bem formular o contraste que aparece no comportamento das duas confissões religiosas em face da vida econômica nos seguintes termos: “O católico (...) é mais sossegado; dotado de menor impulso aquisitivo, prefe-
re um traçado de vida o mais possível seguro, mesmo que com ren-
dimentos menores, a uma vida arriscada e agitada que eventual-
mente lhe trouxesse honras e riquezas/Piz por gracejo a voz do
povo: ‘bem comer ou bem dormir, há que escolher’. No presente caso, o protestante prefere comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”. De fato, com a frase “querer comer bem” é possível caracterizar, embora de modo incompleto mas pelo menos em parte correto, a motivação daquela parcela de protestantes mais indiferentes à Igreja na Alemanha de hoje. Só que no passado as coisas eram muito diferentes: como se sabe, os purita-
nos ingleses, holandeses e americanos se caracterizavam, como adiante veremos, justamente pelo oposto da “alegria com o
mundo”, sendo isso a meu ver um de seus traços de caráter mais importantes. Já o protestantismo francês, por exemplo, conservou por muito tempo e de certo modo conserva até hoje esse caráter
que por toda parte foi a marca das igrejas calvinistas em geral e sobretudo daquelas “sob a cruz” na época das guerras de religião.
Isso não obstante — ou precisamente por isso, como haveremos
de nos perguntar em seguida? — ele ter sido, como se sabe, um dos principais portadores do desenvolvimento industrial e capitalista da França, e assim permaneceu nos estreitos limites que a perseguição permitiu. Se quisermos chamar de “estranhamento do mundo” essa seriedade e o forte predomínio de interesses religiosos na conduta de vida, os calvinistas franceses foram então, e são,
pelo menos tão estranhos ao mundo quanto, por exemplo, os cató­licos do Norte da Alemanha, para os quais seu catolicismo é indubitavelmente um sentimento tão do fundo do coração como para nenhum outro povo na face da terra. E ambos se afastam, na mesma direção, do partido religioso dominante: dos católicos da França, tão contentes da vida em suas camadas inferiores e francamente hostis à religião nas camadas superiores, e dos protestantes da Alemanha, hoje absorvidos na vida mundana dos negócios e
majoritariamente indiferentes à religião em suas camadas superiores. Poucas coisas mostram tão claramente quanto esses paralelos que com noções tão vagas como o (pretenso!) “estranhamento do mundo” do catolicismo, a (pretensa!) “alegria com o mundo” de cunho materialista do protestantismo e tantas outras noções desse gênero, não se vai muito longe, porquanto nessa generalidade elas estão longe de exatas, quer para a atualidade, quer ao menos para o passado. Quiséssemos entretanto trabalharcom elas, então teríamos que fazer de imediato muitas outras observações que, além dos reparos já feitos, sugerem mesmo que
indaguemos se a idéia de uma oposição não deveria dar lugar à constatação inversa de um íntimo parentesco entre estranhamento do mundo, ascese e devoção eclesial, por um lado, e participa­ção na vida de aquisição capitalista por outro.

MAX WEBER - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO" DO CAPITALISMOOnde histórias criam vida. Descubra agora