CONTINUAÇÃO IV

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De fato é notável- para começar a mencionar alguns aspectos totalmente exteriores - que grande número de representantes precisamente das formas mais internalizadas da piedade cristã
tenha vindo dos círculos comerciantes. É o caso em especial do pietismo, que deve a essa procedência um número notavelmente grande de seus adeptos mais convictos. Aqui se poderia pensar
numa espécie de efeito contrário que o "mamonismo" provoca em naturezas introvertidas e pouco afeitas a profissões comerciais e, com certeza, como no caso de Francisco de Assis e de tantos daqueles pietistas, foi assim que o mais das vezes o acontecimento da"conversão" se apresentou subjetivamente ao próprio convertido, !E de modo análogo se poderia tentar explicar o fenômeno igualmente frequente e notável - do qual Cecil Rhodes é um exemplo - , a saber, que dacasa de pastores tenhamnascido empresários capitalistas de grande estilo como uma reação contra a educação ascética recebida em sua juventude. Mas esse modo de explicação falha quando um virtuosístico senso de negócios capitalista coincide, nas mesmas pessoas e nos mesmos grupos humanos, com as formas mais intensas de uma devoção que permeia e regula a vida toda; e não se trata de casos isolados, mas sim propriamente da marca distintiva de grupos inteiros de igrejas e seitas protestantes historicamente da maior importância. Especialmente o calvinismo, onde quer que tenha surgido,15 exibe essa combinação. Por menos que ele estivesse ligado, na época da propagação da Reforma, a uma determinada classe em particular em algum país (como em geral qualquer das confissões protestantes), um traço característico e em certo sentido "típico" das igrejas huguenotes francesas foi que, por exemplo, os monges e os industriais (comerciantes, artesãos) estivessem desde logo numericamente bem representados entre os prosélitos, e assim permaneceram mesmo nos tempos de perseguição. Já sabiam os espanhóis que "a heresia" (ou seja, o calvinismo dos Países Baixos) "fomentava o espírito comercial" [e isso corresponde perfeitamente às opiniões que avançou Sir W. Petty em sua discussão sobre as razões da escalada capitalista nos Países Baixos]. Gothein tem razão quando designa a diáspora calvinista como o "viveiro em que floresceu a economia capitalista". Alguém poderia aqui considerar que o fator decisivo foi a superioridade da cultura econômica francesa e holandesa, da qual se originou majoritariamente essa diáspora, ou ainda a poderosa influência do exílio e do desencaixe das relações vitais tradicionais. Ocorre, porém, que na própria França, como atestam as lutas de Colbert, a coisa era exatamente a mesma no século XVII. A Áustria mesmo - para não falar de outros países - vez por outra importou diretamente fabricantes protestantes. [Nem todas as denominações protestantes, porém, parecem operar com a mesma força nessa direção.,O calvinismo, ao que parece, fez o mesmo também na Alemanha; no Wuppertal como noutras partes, a confissão "reformada",20 em comparação com outras confissões, parece que favoreceu francamente o desenvolvimento do espírito capitalista. Mais do que o luteranismo, por exemplo, é o que parece ensinar a comparação feita no conjunto e no pormenor, especialmente para o Wuppertal.Para a Escócia, Buckle e, entre os poetas ingleses, notadamente Keats, enfatizaram essas relações.]Ainda mais estrondosa é a conjunção, que basta apenas evocar, da regulamentação religiosa da vida com o mais intenso desenvolvimento do senso de negócios justamente naquelas inumeráveis seitas cujo "estranhamento da vida" se tornou tão proverbial quanto sua riqueza: especialmente os quakers e os menonitas. O mesmo papel que os primeiros desempenharam na Inglaterra e na América do Norte coube aos últimos nos Países Baixos e na Alemanha. Que na própria Prússia oriental Frederico Guilherme I tenha admitido os menonitas a despeito de sua categórica recusa de prestar serviço militar, por serem os imprescindí­veis portadores do desenvolvimento industrial, é apenas um dentre tantos outros fatos conhecidos a ilustrar isso, mesmo levando-se em conta a peculiaridade desse rei. Finalmente, é fato notório que também entre os pietistas valeu a combinação de devoção intensa com senso de negócios e sucesso econômico igualmente muito desenvolvidos: basta a gente se lembrar [das circunstâncias na Renânia e] de Calw; e não cabe mais ficar empilhando exemplos em digressões como essas, totalmente provisó­rias. Isso porque esses poucos exemplos já revelam, todos eles, uma coisa só: o "espírito de trabalho", de "progresso" ou como se queira chamá-lo, cujo despertar somos tentados a atribuir ao protestantismo, não pode ser entendido, como hoje sói acontecer, [como se fosse "alegria com o mundo" ou de qualquer outro modo] em sentido "iluminista". O antigo protestantismo de Lutero, Calvino, Knox, Voêt, ligava pouquíssimo para o que hoje; se chama "progresso". Era inimigo declarado de aspectos inteiros da vida moderna, dos quais, atualmente, já não podem prescindir os seguidores mais extremados dessas confissões. Se é para encontrar um parentesco íntimo entre [determinadas manifestações d']o antigo espírito protestante e a cultura capitalista moderna, não é em sua (pretensa) "alegria com o mundo" mais ou menos materialista ou em todo caso antiascética que devemos procurá-lo, mas sim, queiramos ou não em seus traços puramente religiosos, - Montesquieu diz dos ingleses (Esprit des lois, livro XX, cap.7) que "foi o povo do mundo que melhor soube se prevalecer dessas três grandes coisas: a religião, o comércio e a liberdade". Terá havido porventura uma conexão entre sua superioridade no campo dos negócios - e, num outro contexto, seu pendor para instituições políticas livres - e esse recorde de devoção que Montesquieu reconhece neles?

MAX WEBER - A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO" DO CAPITALISMOOnde histórias criam vida. Descubra agora