Capítulo 2

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Depois daquele dia, Rafael passou grande parte do tempo no quarto, às vezes nosso pai levava o jantar para ele e, se não levava, ele não descia para comer. Mamãe havia o colocado de castigo por causa das vezes que ele estourava e quebrava as coisas que via pela frente. Ele parecia não se importar com o castigo, parecia algo normal, pois ele não saía do quarto mesmo…
Até aquele dia em que o ouvi chorar quando passei em frente ao seu quarto, ninguém se importava – pelo menos era o que via em casa – se ele não aparecia para o jantar ou pulava algumas refeições. Nosso pai sempre levava algo e demoravam um bom tempo lá. Ele estava visivelmente triste e consegui ver aquilo só depois daquele dia, ao ver a expressão preocupada na face do papai.
– Rafa – o choro parou quando bati à porta – abre aqui – girei a maçaneta.
Ele não me respondeu, então me arrastei para o quarto.

Nosso pai saía naquela noite para ir viajar, então naquela noite ainda estava uma bagunça e ninguém havia dormido ainda.
– Estou de saída – ele beijou o alto da minha cabeça enquanto jogava no computador – cuida do seu irmão e dessa perna, não esquece que essa semana você tem que tirar a tala.
– Tá bom – disse, sem demonstrar muita importância.
– Você não vai demorar, não é? – ouvi o Rafa dizer para o papai.
– É só uma semana, Rafael. Se acontecer alguma coisa, fala para os coordenadores e me liga. Eu resolvo quando chegar.
– Eu não quero ficar sozinho, a mamãe… – percebi que ele chorava e parei de ouvir.
Não era possível que ele ainda estava com raiva por causa das exigências da mamãe. Que frescura! Às vezes sentia raiva daquele drama todo que ele fazia.

Ficava olhando meu irmão, sentado no banco do jardim. Queria falar algumas verdades e dar uma lição de moral. Até um ponto, ele aceitava as brincadeiras de todo mundo, agora não queria nem falar com a gente! Aquilo me incomodava e minha mãe só prestava para bater nele. Ele tinha que ouvir, não apanhar!
– Você devia parar de se importar com as exigências da mamãe e tem que parar de fazer esse drama... ficar com raiva por qualquer coisa, todo mundo está com a cara virada por causa daquele dia no jantar e fora os outros dias também, você sabe muito bem.
Ele olhou para mim com seus olhos vermelhos. Ele não queria demonstrar que havia chorado naquele dia, mas ele não se escondia tão bem assim.
– Eu estou tentando conversar com você.
– Eu não quero falar com ninguém, Danilo. Me deixa sozinho.
Suspirei e continuei limpando o jardim, enquanto ficou mexendo no celular e resmungando.
– Você devia chamar a Luana pra vir aqui em casa, ela é muito gata – tentei puxar assunto.
– Nós não conversamos mais.
– Como assim? – disse, surpreso.
– Ela não é mais minha amiga! – ele disse com firmeza e um certo desdém.
– Nossa, vocês eram tão grudados.
– Você acha que o papai volta em menos de uma semana?
– Ele saiu na noite passada, duvido muito.
Ele suspirou, como se o fato dele voltar dali a uma semana fosse um fardo a carregar.
– Droga… – ele disse, enquanto olhava para a tela do celular.
Entrei no meu perfil do facebook e pesquisei o Rafa. Eu não podia ver nada e ele ainda tinha me excluído, só podia ver a foto de perfil e a data de nascimento.
– Por que você me excluiu do facebook?
– Por que você acha que eu devia ter você no meu perfil? Eu nem entro e você dorme no quarto ao lado.
– Você vivia no facebook.
Fechei a porta do quarto dele e desci.
– O Rafael é um idiota.
– Tá ignorando todo mundo – Fernando tomou um gole da sua cerveja – papai vai colocá-lo nos eixos quando chegar. Ele brigou com a mamãe essa manhã, depois que você saiu.
– Tá um saco ficar aqui com ele e com essas brigas que ele tem com a mamãe.
– Rebeldia, adolescência.
– Eu não tive isso.
– Acho que você é um garoto normal, ele não.
Logo minha mãe chegaria, pensei quando olhei o relógio.
– O que você acha que a mamãe vai fazer para o jantar?
– Ela não disse nada, não faço a mínima ideia.
Fechei a porta da geladeira.
– Tem alguma coisa estranha, você não está sentindo?
Ele balançou a cabeça enquanto trocava os canais na TV.
– Não.
Sentia algo estranho no ar, um incômodo, uma coisa que eu não conseguia dizer o que era. Abri a porta do quarto do Rafa – que por incrível que pareça, não estava trancada e vi meu irmão sentado no meio da cama, olhando para baixo, para o celular. Ele balançava os pés descontroladamente e parecia esperar algo.
– Trouxe seu jantar – coloquei o prato em cima da escrivaninha.
Ele me olhou com as olheiras fortes e os olhos vazios, como se não estivesse ali.
– Você me assusta – o deixei sozinho, antes que gritasse para que eu saísse.
Tudo parecia calmo naquela noite. O silêncio estava estranho, tudo completamente estranho. Acho que era o fato do meu pai não estar em casa e ele sempre estava conversando. Pulei quando ouvi um grito da minha mãe e corri para a sala, de onde o grito havia vindo.
– O que aconteceu? – disse, quando vi minha mãe sentada no chão e o Fernando chorando abraçado com ela. Ela dizia “Não” o tempo todo, e fiquei assustado, podia sentir meu coração pulando.
– O papai, meu Deus.
– O que aconteceu com o papai?
– Ele morreu em um acidente. Ele estava vindo pra casa e teve um ataque fulminante – Fernando disse.
– O quê? – ouvi um sussurro atrás de mim – O papai morreu?
Rafael perguntou para mim quando olhei para ele. Ele me olhava assustado e empalideceu, enquanto fixava o olhar em mim. Ele pareceu desabar depois que sentou na ponta da escada. Eu me sentia estranho, eu não conseguia chorar. Eu estava… eu estava em choque.
– Meu Deus…
Sentei no sofá e ali fiquei. Quando comecei a chorar, pareceu que algo havia destravado dentro de mim, que ficava sem ar para respirar. Meu Deus, o que nós íamos fazer agora? Ele era nossa vida!
Não sabia se subia para o meu quarto e ficava trancado lá ou se ficava vendo minha mãe chorar daquela maneira enquanto tentava ligar para a nossa avó. Fernando disse que ficaria com ela, então subi para ficar sozinho. Estávamos todos transtornados. Eu não sabia o que fazer, meu pai não voltaria mais para casa e era tão doloroso, ainda mais ver minha mãe chorando a cada suspiro que dava. Parecia que meu coração havia se rasgado e não pararia de sangrar tão cedo.
Ouvi os choros do Rafael quando passei em frente à porta do quarto dele.
– Rafa.
– Sai daqui – o ouvi sussurrar.
Abri a porta devagar e ele estava no mesmo lugar de antes, como se não tivesse se movido.
– Eu disse pra você sair! – ele me fuzilou com o olhar.
– Não quero ficar sozinho, o Nando está com a mamãe. Posso ficar aqui com você?
As lágrimas dele fizeram as minhas aparecerem novamente.
Fechei a porta e me sentei na frente dele. Quando coloquei a mão no seu braço, ele se encolheu e começou a chorar mais ainda. Parecia que quem estava sofrendo mais ali, era ele.
– Ele disse que ia me ajudar – ele sussurrou.
– Nós estamos aqui.
Ele negou.
– Eu não quero vocês, eu quero o papai – ele colocou a mão no rosto.
– Nós te amamos Rafa.
– Não importa! Eu quero que você saia! – ele disse a última frase com tanta raiva que me assustei.
– Eu não quero ficar sozinho.
– Então cale a boca.
Fiquei em silêncio, como ele havia pedido. As coisas dele estavam tão bagunçadas, ele não gostava de deixá-las daquela maneira. Algumas decorações estavam quebradas, coisas que ele gostava muito estavam destruídas.
– Isso mostra minha vida – ele sussurrou, quando percebeu que eu olhava em volta.
– Ahm… o quê? – disse, confuso.
– Uma bagunça – ele dizia, agora calmo – desmoronou tudo, eu não aguento mais.
Ele estava tão estranho, tinha algo nos olhos que me atormentava um pouco. Eu não sabia decifrar o que via e acho que ele não sabia dizer muito bem o que estava sentindo.
– Você usou drogas? Está usando?
Ele negou com a cabeça.
– O que está acontecendo? Eu sou seu amigo.
– Você não é meu amigo. O papai era – ele fechou e abriu os olhos como se tivesse em transe e, quando os fechou novamente, as lágrimas deixaram um rastro em seu rosto. Ficou olhando para mim fixamente, como se buscasse algo em meu rosto – estão me humilhando – sussurrou – eu não consigo pisar naquele colégio sem sentir vontade de acabar com tudo e com todos – engoli em seco – é como se eu fosse o palhaço de circo que chegou para um novo papel e uma nova vergonha pra ser apresentada.
– Você não precisa ligar para eles – ele levantou o rosto para mim e senti o impacto daquela frase em mim, sabia que ele ia dizer algo sobre ela.
– Você não ligaria se tivesse um monte de filhos da puta te chamando de bicha, no meio do intervalo e você ter que terminá-lo dentro da secretaria pra que ninguém possa te bater como da última vez?
– O quê? – pisquei algumas vezes.
– Você não ligaria se tivesse todas as suas redes sociais hackeadas e todo mundo encher elas de pornografia, só porque você é gay? Você não ligaria se os caras enfiassem sua cara na privada ou te batesse na saída? A única pessoa que tentou fazer algo e me tirar daquela merda, morreu! Agora, a nossa mãe não vai fazer isso porque ela odeia gays e não vai aceitar uma aberração, então pra ela tanto faz! – ele gritou, com raiva.
Eu estava… o Rafa…
– Sai daqui.
– Ela sabe? – foi a única coisa que veio na minha mente – Você é gay?
– Vai rasgar meu material também? – ele disse com ironia – Eu quero ficar sozinho. Acho que ela não sabe e eu não estou nem aí se souber! Agora sai.

Antes de você partir - conto LGBTOnde histórias criam vida. Descubra agora