Capítulo 3

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Aquela semana foi uma das piores semanas da minha vida. O velório e enterro do meu pai. Era tão doloroso estar ali e ver ele indo embora pra nunca mais voltar. Ver minha mãe, minha avó, meus irmãos tão desolados daquele jeito. Nosso mundo havia acabado. Estava tudo insuportavelmente triste. Meus olhos alcançaram o Rafael, olhando os túmulos, bem distante de onde estávamos. Ele estava tão triste, não foi ao velório, nem participou do enterro, nem falou com a nossa avó. Na verdade, acho que ele ficou todas aquelas horas olhando os túmulos do cemitério e chorando. Queria ir até lá e fazer companhia, mas ele não ia querer. Eu queria ficar sozinho como ele, mas não queria me sentir daquele jeito, mas pelo que parecia, ele estava e se sentia só depois que disse aquelas coisas no quarto. Ele sentia saudades do papai e não queria ninguém a não ser ele.
Fui em direção a um banco de concreto que tinha espalhado por ali. Era bonito e triste, talvez eu conseguisse ver um pouco de beleza na tristeza, mas aquele dia era tão triste que eu não conseguia vê-la direito.
– Talvez ele quisesse fazer uma surpresa para nós – olhei para o lado e o Rafa estava ali – talvez tivesse acontecido algum imprevisto lá e pôde vir embora mais cedo para fazer uma surpresa, ele sabia que amávamos quando ele estava em casa e sentíamos saudades.
Sorri pra mim mesmo.
– Fernando disse que ele estava vindo para casa – ele comentou e baixou o rosto.
Suspirei.
– Aqui é bonito. Você já foi na parte mais antiga?
– Não.
– É tudo branco – ele disse, sem muito interesse.
Ele encostou na árvore que tinha ao lado e ficamos ali, sem dizer nada por muito tempo. As palavras não importavam, ele estava ali comigo, estando ali, garantia que não faria algo de ruim como havia mencionado várias vezes.

Estava tudo tão vazio naquela casa, um silêncio tão ruim, tão triste. Fernando estava na sala com a Alessandra, mamãe estava no quarto, o Rafa também e eu fiquei no jardim. Eu gostava daqui e não queria sentir a vibração da nossa casa. Papai era tão feliz, se tivesse ali, nós estaríamos fazendo churrasco ou qualquer coisa pra comer – sorri com tristeza, ele amava comer – sentia saudades e não queria ficar com aquela dor no peito, ele não gostaria de nos ver daquela maneira.

Uns amigos do time haviam chamado para jogar bola, mas mesmo que eu quisesse sair de casa, não conseguiria, algo me deixava ali dentro e fazia-me não querer sair do lugar. Eu sentia tanto.
– Quer tomar um sorvete?
Rafa olhou para mim por um tempo, era evidente que ele estava chorando antes da minha chegada.
– Um pouco mórbido pra sair, mas eu não quero ficar aqui. Vamos sair um pouco.
Ele continuou me olhando. Desligou o notebook e trocou de roupa. Vi um roxo muito forte em seu braço quando ele tirou a blusa.
– Bateram em você?
Ele olhou pra mim rápido e colocou a blusa de frio.
– Não.
– Então, o que é isso no seu braço?
– Apareceu do nada.
Estranhei, mas não perguntei mais nada senão ele não iria comigo e o que eu mais queria naquele dia era companhia.

– Estou com fome – ele reclamou, olhando a vitrine de doces da sorveteria.
– Claro, você não almoçou.
Pegou alguns doces e sentamos em uma mesa.
– Tudo bem?
– Você se sente bem?
– Nem um pouco.
– Queria que o papai voltasse, ele nos amava tanto.
– Eu sei, eu também queria.
Não conversávamos muito. Sentia uma tristeza profunda dentro dele, aquilo fazia uns dias, até antes do papai morrer, mas agora ela estava tão nítida que podia ver nos seus olhos, na sua pele, nos cabelos, até nas pontas dos dedos.
– Você acha que eu quero chamar atenção?
– Por quê? Nosso pai acabou de morrer.
– Me sinto tão culpado por estar triste, eu não deveria.
– Como assim?
Ele negou com a cabeça e deixou aquele assunto para trás enquanto comia.
Era estranho saber que ele era gay, na verdade eu não conseguia levar aquilo em conta, mesmo que ele não tivesse mostrado interesse por alguma garota, mas ele era tão… fechado e às vezes tão aberto e bem consigo mesmo. Ele era o humor da nossa família há um tempo atrás e era óbvio que algo estava acontecendo e aquele brilho que ele tinha já havia acabado há muito tempo ou ele mantinha uma máscara no rosto esse tempo todo. Agora, com a morte do papai, não conseguia escondê-la. Ele estava mais pálido, mas triste, com olheiras e havia emagrecido um pouco, coisas que eu não consegui ver naquela roda da família, semanas atrás.
Eu era tão bobo, sempre queria que todos ficassem felizes nos almoços em família e todos unidos, sendo que na verdade, alguns deles não eram assim, principalmente aquela pessoa que sempre se importou com a felicidade e humor dentro de nosso lar. Não suportava ver alguém triste e já fazia carinho ou contava uma piada sem graça. Ele estava triste há muito tempo, desde aquele dia que dava risada e contava piada no café da manhã numa segunda-feira e desde aquele dia que bateram nele no colégio há alguns meses e ninguém fez nada.
– Acho que vou pegar mais um pedaço de torta – ele me tirou dos pensamentos.
– E aí?
Ele olhou para mim esperando que eu perguntasse algo mais, só que não tinha o que perguntar.
Estremeci.
Caminhamos na praça que tinha em frente à sorveteria e depois nos sentamos na grama.
– É tão estranho saber que você gosta de garotos.
– Eu sei, pra mim também é.
Era tão estranho eu dizer aquelas coisas, eu gostava de garotas e não sabia como reagir ao saber que meu irmão gostava de meninos, aquilo era… eu não sabia dizer e também não sabia dizer se era contra ou não. Eu não…
– Vejo o mundo de uma forma diferente. Eu tenho medo e vergonha, isso define eu ser gay, medo e vergonha, insegurança também.
Engoli em seco.
– Não tenha pena de mim, mas também não diga se você não gosta de mim, eu não quero saber, pra mim não importa quem gosta de mim ou não.
– Você… – limpei a garganta – pensou na mamãe?
– Pensei em mim.
– A mamãe não importa?
Ele não respondeu. Acho que não…
– Quero ir pra casa – ele sussurrou.
Eu não queria ir, mas o acompanhei.

Na semana seguinte, voltei para o colégio, não era o mesmo que o meu irmão estudava, então eu não o via na parte da manhã, nem à tarde, nem à noite…, mas eu sabia que ele estava lá e não desceu nem para o café, para o almoço e nem para o jantar. Mamãe não se importou se ele apareceria ou não, quando perguntei para ela, simplesmente disse que ele estava estressado e a tranquilidade era prioridade pra ele. Caso sentisse fome, ia atrás de comida, mas ele não foi. Ela tinha falado num tom tão indiferente que eu mesmo fiquei assustado. Fernando não se importava e nem dizia nada, só ligava para a namorada e com o trabalho ou faculdade.
Eu sentia saudades do papai, ele não deixaria aquilo acontecer e levaria o jantar pra ele. Percebi o quanto ele se importava com o Rafael, mas eu não sabia que era por causa daquilo, o papai sabia que ele era gay e havia escondido aquilo de todos,  bom… pelo menos eu achava que era de todos, ou só eu quem não sabia, ai… sei lá… Eu não ia perguntar para o Fernando porque parecia tão reservado a isso e seria pior se ele soubesse que o Rafa era gay. Na verdade ele não era reservado, ele odiava gays e nem perguntaria para a mamãe, ela também não gostava. Quem seria idiota a ponto de perguntar para sua mãe se seu irmão era gay? Só eu mesmo…
Não sabia dizer o meu ponto de vista em relação à sexualidade do meu irmão. Eu que vivia chamando os caras do time de viado, ainda mais quando ele estava perto de mim. Como eu era idiota, ele nunca se assumiria para mim naquela época, ele se sentiria mal, isso sim. Que coisa horrível, eu era tão nojento e o magoava sem perceber. E o papai? Por que o papai? Quem ia até a escola quando algo acontecia era ele, a mamãe nunca se disponibilizou, será que ela sabia e não aceitava? Droga, eu estava confuso…
Pensei naquelas coisas o tempo todo. Eu não conseguia dormir sabendo que o Rafa não havia comido nada o dia inteiro. Levantei e preparei um lanche enorme e fui até o quarto. Parece que, conforme as horas passavam, ali ia ficando cada vez mais quente, abafado e bagunçado
– Rafa – ele ia ficar com raiva se eu acendesse a luz, mas fiz aquilo e o vi resmungar, enquanto escondia o rosto nos cobertores – trouxe um lanche pra você comer.
– Eu não quero.
– Você não sabe o que tá perdendo.
Sentei na cama e tirei o cobertor do rosto dele. A expressão triste não parecia mudar. Ele sentou e pegou o prato da minha mão.
– Você devia descer e comer conosco no café, no almoço, no jantar…
– Eu não ligo. Obrigado pelo lanche – disse, com a boca cheia.
Depois que terminou, entregou o prato e voltou a dormir.

Antes de você partir - conto LGBTOnde histórias criam vida. Descubra agora