Kaioul andava distraído, com as mãos nos bolsos e se encolhendo de frio. Berlim era congelante naquela época do ano. A cidade, branca e cinzenta, submersa em neve, mergulhava em uma tristeza desoladora e solitária. Um frio constante que atravessava a matéria real do corpo e atingia os confis da alma.
É claro que em um dia como esse se deseja ficar em casa, debaixo dos cobertores, sonhando com dias mais quentes. Kaioul costumava fazer isso, mas naquele dia tinha acordado no meio da tarde com uma vontade de ver o mundo e encarar as tristezas do dia como uma beleza necessária. A beleza do mundo e a brancura do céu doíam, mas a dor também existia e precisava ser considerada.
Seu estômago roncou no exato momento em que se percebeu longe demais de casa. Precisava comer algo o mais rápido possível, antes que passasse mal, como costumava acontecer. Escolheu o restaurante mais próximo e sentou-se em uma mesa na varanda. Não queria ficar fechado em um lugar cheio de pessoas famintas por comida e por barulho. Queria que o silêncio daquele dia fosse respeitado. Já havia barulho demais na vida, principalmente na sua. Às vezes, era preciso dar um tempo e aproveitar o silêncio, mesmo que isso significasse mais frio e mais neve.
Sentiu um toque leve sobre seu ombro, chamando-lhe a atenção. A recém-chegada sorriu para ele, com uma estranha expressão de boas-vindas. Era a garçonete, com seu uniforme e seus cabelos negros, caindo sobre os ombros.
Naquele momento, Kaioul teve dificuldade em distinguir uma simples garçonete, da beleza explêndida do dia de chuva. Ela parecia fazer parte da paisagem, com seus longos cabelos cheios e cacheados, seu sorriso verdadeiro e acolhedor, seu rosto fino e perfeito em todos os traços. Entretanto, escondido em tamanha beleza, estavam seus olhos parados e vazios. Eram tão brancos quanto a neve ao redor. Ela era cega.
— O que vai querer, senhor? — Perguntou ela, educadamente, como se olhasse para ele.
— Ham... — Kaioul despertou de sua inércia e tossiu, analisando o cardápio. —Ham... eu... ainda não sei.
— Se quiser mais um tempo...
— Não. Na verdade, pode me trazer ovos mexidos com queijo e um suco de acerola.
— Boa escolha — ela sorriu e virou as costas, voltando para o salão.
Era impressionante a precisão com que circulava pelas mesas, a atenção que dava aos fregueses, como se pudesse vê-los. Enquanto a comida era preparada, e Kaioul observava o trabalho da garçonete, ele começou a se perguntar como era possível viver tão bem sem um dos sentidos, sem um sentido tão importante quanto a visão.
Fechou os olhos e tentou ficar o maior tempo possível assim. Conseguia ouvir o burburinho das pessoas no restaurante e as buzinas ensurdecedoras dos carros atolados na neve na rua. Era enlouquecedor! Não aguentou trinta segundos. Sentiu medo e ansiedade, precisou abrir os olhos.
A garota voltou, trazendo a bandeja em mãos e a entregando com o sorriso de sempre.
— Obrigado — ele disse.
— Por nada — ela sorriu e virou as costas.
Kaioul foi para a cama, naquela noite, com aquele pensamento ruim e uma preocupação demente com aquela mulher. Não enxergar o mundo era extremamente perigoso, mas ela parecia não se dar conta do risco que corria. Ele não conseguiu dormir pensando em como ela conseguia sorrir e não viver revoltada e triste, que era a forma como ele mesmo viveria, se estivesse na pele dela.
No outro dia, ele não pôde se conter. Voltou ao restaurante no mesmo horário e foi novamente atendido pela garçonete.
— Boa tarde — ela sorriu, depois de tocar em seu ombro, como fazia com todos os fregueses.
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A cor dos olhos
HorrorKaioul Ludwig caminha pela cidade de Berlim, aproveitando o dia bucólico e branco do inverno. Faminto, ele procura um restaurante onde possa desfrutar de um bom prato quente e refletir sobre a existência da vida e do mundo. Apesar de frio, o dia pa...