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"Primeiro registro. Hora, dia e temperatura... não ligo. Plano de Latalie.

Geralmente escrevo algumas coisas quando saio pra viajar. Eu sempre levo um bloquinho ou um caderno porque vai saber o que preciso anotar e onde vou estar quando mochilo por aí. Mas dessa vez não é qual linha de ônibus preciso tomar, endereço de albergue, planejar a rota ou anotar um nome de restaurante.

Agora é um diário mesmo... ou quase isso. Cheguei à conclusão de que vou precisar disso para explicar o que está acontecendo para outras pessoas e para mim mesmo. Porque vamos encarar. Eu vou enlouquecer. O que eu acabei de fazer foi, quase que literalmente, vender a minha alma. E quase que literalmente porque quando eu falei em oferecer a minha alma a pessoa... ser... coisa que me vendeu poderes mágicos ficou com olhos em chamas quando eu mencionei essa possibilidade. Ele chegou até a perguntar o quanto e o que eu queria por ela e garantiu que muito pouco estaria fora do meu alcance se eu entregasse.

Mas como eu achei que essa não era a ideia mais genial que eu poderia ter na vida mesmo com o meu nível de desespero, eu resolvi ficar com ela e usar sangue como moeda de troca... quanto mais eu escrevo menos eu acredito em tudo isso. É como se fosse um pesadelo em que eu acordo e de repente vou pra outro. Só que não é Inception, é... acho que vou começar com o básico e garanto que tudo é verdade.

Meu nome é Larry Heiber. Não que agora seja muito importante ou faça diferença, mas nasci brasileiro de uma família de ingleses com um lado alemão demorado de explicar. Tenho quase 25 anos de idade e eu trabalhava como funcionário público numa biblioteca municipal. Num belo dia encontrei um livro mágico na sala de cadastros que me fez viver aventuras bizarras com direito a magia, animais falantes, mundos fantásticos e experiências de quase morte.

Essas viagens eventualmente me levaram para um plano/mundo chamado Latalie. Eu e os amigos que fiz ao longo do caminho ficamos presos nele. Não importa o que eu faça ou escreva nesse livro mágico, eu não consigo abrir uma passagem para fora desse lugar.

Isso não seria um problema se: 1 – Esse lugar não fosse hostil e não quisesse nos ver afundados, deprimidos, mudos, pesados e aprisionados. 2 – Eu não enxergasse o porquê estamos nessa situação.

Fantasmas existem. E esse lugar está infestado com eles. E não estou falando infestado no sentido de chamar um padre, um exorcista ou os caça-fantasmas para resolver. Estou falando de um poço de morte. O que eu enxergo são fantasmas empilhados em fantasmas, recheados com fantasmas e com cobertura de fantasmas. Se eu tentasse contar quantos eu enxergo, seria como tentar contar grãos de areia numa praia.

Eu sempre ouvi que um "peso morto" é difícil de carregar, principalmente quando essas pessoas crescem em número e não ajudam. Mas o que acontece quando essa expressão é literal? O que acontece quando há tantos fantasmas, não em um lugar, mas em um mundo todo que sequer os vivos conseguem andar ou falar sem luta?

Até vender o sangue eu sentia eles se amontoarem em cima de mim. Vi eles amontoados em cima dos meus amigos e os moradores da vila em que fomos só faltavam desencarnar de tão secos que estavam.

Agora mesmo eles me olham. Estou falando alto e "sozinho". Estralando os dedos. Esfregando o rosto. Me espreguiçando. Escrevendo com tanta força que sinto dores nas mãos. E eles me olham esperançosos. Famintos até. É como se quisessem beber a minha vida ou então me implorassem para que eu os libertasse dessa morte de algum jeito...

É por isso que eu disse que vou enlouquecer. Porque eu juro que tudo isso é verdade. E porque não baastasse isso, eu fiz coisas horríveis. Coisas horríveis porque a pessoa que também me implorou por libertação me explicou que esse seria o único jeito e garantiu que já havia tentado de quase tudo.

Fantasia: Viagens - VolpiOnde histórias criam vida. Descubra agora