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Todo dia era a mesma coisa e eu já estava de saco cheio de tudo isso. Começava logo pela manhã, antes mesmo de sairmos da cama, ela reclamava comigo sobre algo que tinha feito na noite passada enquanto estávamos bêbados e me dizia o quanto não precisava de mim, que era independente e que a minha companhia muitas vezes só servia para tapar algum buraco – ela estava certa, tenho sido uma péssima pessoa recentemente, mas são duras palavras para se ouvir pela manhã, antes das nove horas. Depois ela me expulsava de sua casa aos berros, antes do café da manhã, me empurrava até eu sair da cama. Irritado, eu jurava aos céus que nosso amor tinha acabado.

Eu levantava xingando baixo, não queria que ela ouvisse e a discussão ficasse pior, mas Lisa sabia o que eu estava dizendo. Jurava a mim mesmo que nunca mais iria me sujeitar a esse tipo de coisa. Vestia minha roupa enquanto ela recapitulava todas as coisas que lhe disse e todas nossas brigas passadas e saía pela porta da sala. Antes mesmo de chegar ao carro que estava estacionado do outro lado da rua, ela aparecia na janela jogando parte das minhas roupas, eu mandava ela se foder enquanto recolhia tudo do chão – teve um dia que ela atirou um vaso de vidro em minha direção e por pouco não me acertou, mas eu merecia, naquele dia eu tinha dito que preferia ter-me casado com outra pessoa. Entrava no carro e dava a partida, ligava o rádio e dirigia com todos os vizinhos me olhando.

Tinha um Ford que não era tão novo, mas também não era tão velho e ia com ele até a padaria mais próxima, dois quarteirões de distância da casa de Lisa. Pedia a mesma coisa de sempre: dois pães de queijo, um café forte e um copo d'água. Jane, a atendente que a essa altura tinha se tornado minha amiga, vinha com o pedido.

- Mais uma briga daquelas? – ela dizia debruçada no balcão querendo ouvir a história da vez. Jane tinha o cabelo encaracolado, preto, os olhos castanhos e a pele negra. Era um ótima pessoa, além de linda e nunca me cobrava pela água.

- Dessa vez foi minha culpa. Acho que agora não tem mais jeito.

- Toda vez é sua culpa, sabemos disso. Você sempre diz que acabou e amanhã estão de volta, como se nada tivesse acontecido. Sempre voltam como se nada tivesse acontecido. Vocês brigam e tu chega aqui com o cabelo desarrumado, a cara de quem acabou de acordar e parecendo um cachorro perdido. Poderia ao menos tomar um banho para sair com a pouca dignidade que te resta – e dava risada vendo meu estado.

Contei a ela o que aconteceu essa manhã e como tudo tinha sido consequência da noite passada. Eu e Lisa bebemos mais do que devíamos e terminamos a noite dizendo coisas horríveis um ao outro. Estávamos juntos há pouco mais de 14 anos e desde sempre foi assim, um caos. Nos conhecemos em uma festa de casamento de um amigo, Marcos é o nome do acidental cupido. Ela usava um vestido vermelho, o cabelo castanho claro estava cacheado e a pele branca brilhava com o sol. Fiquei a olhando por toda festa. Era uma das amigas da noiva, Karen o nome da acidental cupida – mas ela não gostava de mim por achar que tenho problemas de instabilidade emocional, alcoolismo e não conseguir manter o emprego por muito tempo. Ela estava certa.

Fomos apresentados pouco antes do fim da noite e ficamos conversando. Ela tinha 19 anos, cursava o primeiro ano de psicologia e gostava de literatura, gatos, astrologia, astronomia, filmes e muitas outras coisas que eu não conhecia. Eu tinha 21 anos e de tudo que ela me contava, somente os livros me interessavam. Um mundo novo se abria. Trabalhava no mercado financeiro e isso me fez ver o mundo como um lugar cinzento e tedioso. Mas ela tinha uma visão animada, quase utópica sobre a vida. Senti como se nossas vidas se encaixassem.

Lisa tinha vindo de uma cidade litorânea, viveu em outro Estado a maior parte de sua infância e agora se mudou para a capital, essa cidade cinza, morta e sem cor, que te suga e te desmotiva a cada nova rua que você descobre. Na hora de nos despedirmos, dei a ela meu telefone e pedi que ligasse caso tivesse interesse. Ela sorriu. Vi o vestido vermelho ir embora, ficando distante de mim. Entrei no meu carro e fui embora também.

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