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Me salvei de afundar nessas lembranças sentado no balcão da padaria quando Jane interrompeu servindo uma torta de maçã. "Por conta da casa", disse sorrindo, "para ver se melhora seu humor". Eu era o capitão de um barco prestes a afundar, mas pelo menos a torta estava uma delícia. Temos que reconhecer os bons momentos da vida mesmo no meio dessas tempestades que nossa jangada enfrenta às vezes.

Levantei e fui em direção ao caixa, paguei e voltei pro carro. Notei que tinha esquecido o celular na casa de Lisa. Respirei fundo e fui para minha casa. Coloquei minha música favorita para tocar, acendi um cigarro e dirigi por esse curto caminho até meu lar. Cheguei em casa, estacionei de qualquer jeito, sem paciência para essas pequenas exigências da vida. O sol queimava ao tocar minha pele, sua luz rasgava o horizonte e me atingia diretamente. Estava calor. Entrei, joguei os sapatos no chão da sala, senti o cheiro de vinho e comida velha de uma casa que há tempos não era limpa. Tinham roupas, pratos sujos e garrafas vazias de vinho por toda parte. Tomei um banho para resgatar o que sobrou de minha dignidade. A água morna escorria pelo meu corpo, o sol entrava pela pequena janela a minha esquerda, aos poucos comecei a me sentir renovado. O relógio marcava 10:43. Me sequei e fui dormir.

Acordei pouco depois das duas da tarde, o sol tinha ido embora e deu lugar uma gigante massa negra que tomou conta do céu. Parecia que eu tinha dormido o suficiente para que o mundo mudasse de cor, se transformasse em algo escuro, sem vida e sem esperanças. Fiz o almoço de todas as tardes pós briga: macarrão. Conversei um pouco com a vizinha, Marrie, uma senhora viúva que gosta de contar histórias sobre a infância. Está sempre de vestido preto, em um luto eterno pelo marido que se foi vítima de uma doença, mas aos domingos de missa veste um vestido longo e florido, diz que é para agradecer a deus e para celebrar a vida com alegria. Ela tem um cheiro de perfume doce. Entrei quando começou a chover. A água desceu sem piedade e fez com que todos corressem para um lugar seguro. Fui para o sofá, ainda com sono, liguei a televisão, tinha dificuldades para dormir então vivia sempre com sono. Dependia de remédios para insônia e alguns para controlar a ansiedade – minhas amigas que me acompanharam até o final.

Às 19 horas acordei e liguei para Lisa avisando que ia passar para buscar o celular, o resto das coisas e a garrafa de vodca que tinha sobrado. Cansado desse desgaste emocional, determinado a colocar um ponto final em tudo isso, esperava ansioso para que ela atendesse e eu pudesse falar "ESCUTA AQUI, ESTOU CANSADO DESSA PALHAÇADA, VOU EMBORA. PASSO AI PARA PEGAR MINHAS COISAS E VOCÊ NUNCA MAIS VAI ME VER, N U N C A! 30 MINUTOS E ESTOU AI". Não ia mais aturar mais nenhum de seus surtos, não aguentava mais brigar e principalmente, estava cansado de magoar a pessoa que amo e me sentir um idiota.

Mas tudo foi diferente quando ela atendeu. Sua voz estava doce e muito calma, como a brisa antes da tsunami em uma praia no verão. Não fui recebido com os gritos e o escândalo que era comum após as discussões. Ela se disse arrependida de tudo que fez e falou, "não podemos mais viver desse jeito", ela me falava, "as brigas se tornaram um ciclo sem fim". Por fim os dois estavam aos prantos, se desculpando e prometendo um futuro melhor. Me pediu para ir vê-la. "40 minutos estou aí", respondi.

Entrei e comecei a recapitular os últimos 14 anos, como as coisas mudaram e como nós mudamos. Lisa continuava linda, com as maçãs do rosto avermelhadas, tinha cortado o cabelo e o manteve curto. Era doce, mesmo depois de todo esse tempo. Tinha se mudado do loft para uma casa perto da minha. Continuava sendo a mulher da minha vida. Ainda mantinha o mesmo jeito de falar quando imitava alguém e quando ria colocava a mão na frente para não ser vista.

Eu me tornei um antro de caos. Ao me olhar no espelho não me reconhecia mais – o álcool faz isso com as pessoas. Deixei o emprego no mercado financeiro seis anos após namorar Lisa, me tornei escritor, tive dois livros publicados que venceram prêmios e foram best-sellers, escrevi contos, poemas, romances, histórias pornôs e muita, muita coisa ruim desde então. Era reconhecido nas ruas nos primeiros anos. tirava algumas fotos, algumas explicações sobre trechos e livros, autógrafos e tudo mais. Depois de um tempo perdi espaço, outros novos e melhores escritores surgiram – um deles colocou a culpa nos astros e, por deus, como vendeu. Deveria ter pensado nisso antes. Eu ainda recebia um bom pagamento da editora, o suficiente para manter meu padrão de vida e escrever uma ou outra coisa. Trabalhava em um novo romance e essas brigas tomavam muito do meu tempo.

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