II

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Era o final de setembro, céu azul, ar fresco... muito diferente do clima típico de outono em Chicago. Fiquei pensando se era assim que se respirava no campo, o ar limpo e fresco. Dentro de um trem expresso vedado de Cementville até a cidade não era possível sentir isso. Olhei para Sandy duvidando se ela já havia pensado algum dia sobre o tempo, a não ser se ele desajeitasse seu cabelo ou se a forçasse a vestir um casaco sobre algum modelo novo.

— Vamos caminhando — desci a rua com Sandy a meu lado.

Na rua State, as propagandas eram tantas e tão irritantes, bombardeando-nos de dentro de cada loja. — Levem o último audiovídeo portátil, praticamente  invisível na sua orelha e compatível com qualquer aparelho celular, por apenas 29 dólares e 95 centavos... Visitem o Lado Negro, serviço especial de viagem à lua, comprem uma passagem e ganhem outra para o acompanhante, de domingo a quinta-feira... Hambúrgueres de Marte, com um sabor de outro mundo.

Sandy e eu conversávamos usando nosso AVP para conseguirmos  ouvir uma a outra em meio ao som das propagandas. Estávamos planejando nossa programação do dia quando ouvimos um barulho alto como o de uma batida e, em seguida, mais duas vezes. Três vans haviam se chocado com um estrondo bem no meio da rua. O trânsito inteiro parou. Desligamos nossos AVPs. Nenhuma propaganda berrava. O silêncio era total, o que era ainda mais estridente do que a própria batida do acidente que acontecera. 

Sandy me encarou, seus olhos estavam arregalados. Por um momento, achei que ela fosse chorar. Em vez disso, ela sussurrou: — AntiCons.

Minha gargante se fechou de pânico. Olhei à minha volta, procurando alguém que não parecesse comum, mas todos eram normais,  exceto por suas expressões confusas. O mendigo que entrou sorrateiramente no beco, atrás da estação de transmissão, quase passou despercebido por meu cérebro.

Uma voz masculina falou pelo aparelho de propaganda: — Este momento de silêncio é fornecido a vocês pela Resistência. No silêncio, as pessoas conseguem pensar com a própria cabeça. Exatamente o que o Governo...

Um som eletrônico estridente cortou suas palavras e a metade das pessoas na rua, incluindo Sandy e eu, levou as mãos aos ouvidos. Uma van de cabine dupla guinchou e dois homens armados com kits de ferramentas saltaram e correram para a estação de transmissão.

Quando pensei que já não suportaria mais aquele som lancinante, houve um estalido e então: — ... a liquidação da composição musical O Fim das Guerras acaba  à meia-noite de hoje. Não lute por pechinchas, compre na Liquida-Rama, onde todos os negócios são bons negócios.

Vários policiais haviam chegado ao local. Alguns estavam discutindo com os homens do conserto, enquanto outros interrogavam os motoristas envolvidos no acidente. Ouvi um deles dizer: "Policial, eu não sabia o que fazer. Ficou tão silencioso de repente. Achei de fosse algum tipo de emergência. Então, pisei no freio...".

O trânsito voltou ao normal e Sandy e eu religamos nossos AVPs. Ao passar pelos policiais, abaixei a cabeça. Fingi que examinava uma sujeira na minha calça jeans e olhei para o beco onde aquele homem havia desaparecido. Estava vazio.

— Duas semanas atrás, quando minha mãe e eu viemos para a cidade, aconteceu a mesma coisa. Não o acidente, mas o silêncio — disse Sandy. — Fiquei apavorada daquela vez também. Minha mãe disse que isso está acontecendo cada vez mais — ela cerrou o cenho. — Malditos AntiCons. Como eles se atrevem a dizer que as pessoas não pensam com a própria cabeça?

Eu não ia dizer que gostei do silêncio, fosse por causa dos AntiCons ou não. O constante bombardeio das propagandas realmente não dava chance pra pensar. Ginnie sempre nos ensinou que pensar  por nós mesmos era a coisa mais importante. Quando vejo Sandy seguindo cegamente qualquer coisa que o último frenesi da mídia diz... sei que minha mãe está certa. Mas é difícil ser a única pessoa que pensa como eu. Às vezes, queria apenas ser como qualquer outra pessoas de minha idade e não pensar em nada.

Estávamos quase chegando à vovó e Pops, então mudei de assunto. Apontando para o prédio do outro lado do rio Chicago, eu disse: — O reflexo na água é bem legal, não é?

Sandy mal olhou para cima. — É. É bom que aquela previsão do tempo não tenha errado — ela deu um tapinha no seu novo relógio Chronos "tudo-em-um". — Ele diz que são onze e meia, a temperatura está 16 graus e que estamos na esquina da LaVenda com a rua Wacker — ela estreitou os olhos para ler a placa da rua. — Acho que está certo.

Enquanto esperávamos o farol abrir para atravessarmos. fiquei encarando a parede de vidro que brilhava por causa da luz do sol que refletia na água. Lembrei-me de um quadro que vi na excursão para o Instituto de Arte.

Lá dentro, o lobby mal se assemelhava à arte: um lar subsidiado para aposentados e pensionistas com deficiências como Pops, decorado com bege e cinza horrorosos e sem vida, as cores padrão dos prédios do governo. Vovó sempre ameaça fazer um ataque escondido no lobby com uma lata de spray cor de arco-íris só para conseguir ter um pouco de vida lá dentro.

Fiquei  pensando novamente, como faço desde sempre, sobre como seriam as nossas vidas se Pops não tivesse sofrido o acidente. Ele estava a caminho de subir na sua categoria, a caminho de se tornar parte da Corporação antes de isso acontecer. Tudo teria sido tão diferente, talvez meu pai ainda estivesse vivo... se apenas...

— Ei, Nina, em que planeta você está? — Sandy deu um tapinha no meu ombro. — O farol abriu.

Sacodi a cabeça de volta para a realidade, determinada a não me deixar cair em pensamentos sonhadores, impossíveis. Corremos pela ponte.

Na entrada, abri um sorriso falso para o quadro de segurança e coloquei minha mão no painel de reconhecimento automático, anunciando: — Nina Oberon e convidada — agarrei os ombros da Sandy e a posicionei de frente para o painel... ela também sorriu.

— Não me deixe esquecer de comprar um presente de aniversário de casamento para vovó e Pops. — Eu a guiei pela porta que girava e, depois, para o compartimento seguinte. — Trinta e oito anos — gritei através do vidro. Antes que ela pudesse sair, fiquei nos fazendo girar mais algumas vezes. Finalmente, rodopiamos para o outro lado com um ataque de riso. — A maior parte do tempo, vovó e Pops ficam pegando no pé um do outro... Você sabe, como aquelas galinhas no zoológico — puxei a manga da camiseta de Sandy e ela deu um tapa em minha mão, rindo. — Mas eles se amam de verdade.

— Só porque as pessoas são casadas não significa que são apaixonadas. Se Ed amasse a esposa dele, ele não estaria com sua mãe.

— Não — olhei para ela de lado.

— Desculpa.

Ela sabia que eu odiava Ed. Mais  vezes do que  eu conseguia me lembrar, Ginnie me mandava, e também Dee, para a casa de Sandy quando Ed ia lá. Dessa forma, nós quase nunca víamos a força total da fúria dele, embora eu sempre tivesse lugar na primeira fila para ver as consequências. Geralmente, fazia o máximo para não pensar nele. Especialmente nele e em minha mãe juntos.

— De qualquer forma — disse Sandy —, minha mãe e meu pai eram apaixonados. Lembro-me do quanto eles costumavam rir e dançar em volta de casa quando eu era pequena. O papai girava a mamãe e, depois, puxava-me para junto deles — o rosto dela ficou sombrio e ela apertou o botão do elevador. — Ataque militar idiota.

Achei que tivesse desviado o assunto dos AntiCons depois do discurso da Resistência... acho que não. Eu sabia o bastante para não dizer nada. O pai verdadeiro de Sandy era policial. Quando ela tinha cinco anos, ele e seu parceiro estavam num ataque militar nos túneis embaixo do rio Chicago procurando AntiCons. A polícia sido alertada de um grupo de Resistência morando numa cidade subterrânea e escondido nos esgotos antigos. Uma comporta contra enchente ficou aberta e emperrada (de propósito, disse a mídia) e a água inundou o cômodo onde os policiais estavam. Eles morreram afogados.

Ginnie tinha certeza de que fora uma armadilha para fazer os AntiCons parecerem culpados e ela sabia que eles não eram assassinos. Ela devia estar certa, mas eu jamais direi isso para Sandy. Além disso, Ginnie é apenas a caixa de uma lanchonete na Cor-Cem Works, então, como ela saberia algo sobre os AntiCons que o restante do mundo não sabia?

A inocência termina aos XVIWhere stories live. Discover now