Parte I - A primeira cicatriz2016
Conforme eu crescia, me acostumei às coisas que eu via perambulando pelo manicômio. Não que eu estivesse internada – minha mãe gerenciava o lugar, era uma médica psiquiatra -, mas morar ali era quase a mesma coisa. Talvez não fosse saudável viver numa clínica de repouso para doentes mentais, mas sempre fora assim. O conselho tutelar nunca batera à porta, nem nenhuma instituição de saúde ou do Estado. Parecia que éramos invisíveis, até certo ponto.
Não eram os loucos internados hoje, na verdade, que me assustavam. Os loucos do século XXI pareciam mais normais. Eles não me pareciam espectros como aqueles que viviam, em suas cabeças, em outra época. Às vezes eu tinha impressão de que eles pertenciam a outro mundo. Constantemente me lembrava de que eles realmente não viviam na mesma realidade que eu – mas talvez isso não significasse que a deles fosse mentira.
Para ser honesta, essas pessoas não chegavam perto do que eu escutava e sentia enquanto caminhava por aqueles corredores de pedra.
Anos e anos de tanto sofrimento afetavam a energia do lugar, disso eu tinha certeza. Quando me pegava escutando sussurros por entre as paredes de pedra ou tendo a impressão de ter visto vultos ou fantasma, meu coração disparava e eu precisava de um momento para voltar a respirar normalmente. Grace, com seus quadris rechonchudos e sua fala mansa, passava as mãos quentes nos meus braços e dizia que era só a "contaminação". "Sua mãe não teve escolha a não ser assumir o local", repetia, triste, mas com uma ponta de emoção tão obscura na voz que eu me perguntava se havia mais sentimentos que ela escondia de mim. Ela não queria me pôr contra uma das únicas duas pessoas com laços sanguíneos que me restavam.
Grace era minha segunda mãe e, em muitas situações, era a primeira. Não me lembrava de uma única vez ver mamãe sair da casa comigo para ir à escola, ou ao médico, ou ao mercado, ou simplesmente para passear nos quilômetros de hectares de terra que pertenciam à propriedade. Maeve, minha mãe, ficava na soleira da porta, às vezes na varanda, acenando com um sorriso melancólico enquanto Grace me arrastava para lá e para cá.
Quando estávamos fora, eu percebia como o manicômio parecia mais uma casa da idade medieval lúgubre feita para turistas curiosos. No meio dos campos verdes da Escócia, entre o Castelo de Culzean e a cidade de Ayr, o pequeno vilarejo de Bàs tinha o manicômio como prédio principal. Era uma construção centenária, com suas primeiras pedras postas ainda na Alta Idade Média. Grande, escura pelas pedras cinzas e pretas, parecia não ter fim do lado de dentro. As janelas eram de vidro, reformadas, mas nem assim davam claridade suficiente do lado de dentro. Mais recentemente, haviam recuado o primeiro andar para fazer uma varanda. E era o mais longe que os internos iam. Mesmo com um gramado e árvores enormes no jardim e ao redor, não me lembrava de ter visto alguma vez um deles sequer pisar na grama.
Grace não entendia o motivo também. Todos os internos tinham direito de passar pelo menos três horas ao ar livre, mas nenhum parecia gostar. Não que o clima da Escócia ajudasse também – nunca estava quente demais e nem ensolarado demais. Dias de céu totalmente azul eram difíceis, mas não impossíveis. Mesmo assim não era compreensível para mim como alguém conseguia ficar trancado ali dentro o tempo inteiro, respirando aquele ar de doença, de morte, de loucura, escutando os sussurros, passos e vendo os fantasmas que espreitavam nos corredores.
Bàs era inútil para conseguir coisas mais complexas do que pão, doces e remédios para dor de cabeça. Qualquer coisa fora isso requeria uma viagem de meia hora até Ayr ou de uma hora ou mais até Glasgow. Eu não tinha costume de sair muito – e a maioria dos amigos que eu fiz foi superficialmente, visto que moravam em Ayr e eu não podia ir até lá toda vez que eles resolviam se reunir – e perambulava pelo pequeno vilarejo, na maioria das vezes sozinha ou acompanhada de algum bicho de rua. Acho que não havia mais do que cento e cinquenta famílias na cidade, a maioria idosos ou casais jovens sem filhos ou com um filho recém-nascido. As casas eram todas de pedra, mas grande parte parecia ter sido feita mais recentemente, no século 18 ou 19.
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Origens - Pacto de Sangue
FanfictionA família de Natale toma conta de um manicômio afastado dos centros urbanos, no interior da Escócia. Desde pequena, porém, Natale sofre com pesadelos, visões e vozes e a presença Dele - um homem alto, de roupas pretas, que a atormenta desde os seus...