Capítulo II - Nollaig

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Acordei caindo do divã. O barulho do ar me despertou antes do meu rosto atingir o chão de madeira. Minha visão ficou turva por um momento - de longe eu via dois pés escuros, bem pequenos, cobertos por um vestido branco pesado, um do tipo que se usava para dormir durante a época de Henrique VIII.

O sono era tão forte que pensei em ficar ali mesmo, olhando o mundo deitado. Rose aproximou devagar, hesitante, provavelmente com medo de eu estar com raiva por ela ter me acordado. Devo ter dormido enquanto lia. A noite anterior ainda me assombrava e tirara todo meu descanso. O sono pairava como uma guilhotina sobre mim.

"Natale? Desculpe, vi que a porta estava entreaberta...", Rose sussurrou. Seu sotaque londrino carregado dava a ela uma aparência bem britânica tradicional, mas, ao encará-la, as expectativas se quebravam facilmente. Rose era baixinha, com traços indianos, pele escura e cabelo volumoso ondulado que descia até abaixo do quadril. Os olhos eram grandes e bonitos, de um tom de chocolate claro, quase translúcido. Usava sempre roupas que lembravam pebleias do século XV.

Nunca consegui identificar o motivo pelo qual Rose fora internada aqui. Não me lembrava quando, na verdade. Mamãe dissera que ela aparecera aqui com a mãe quando eu ainda era muito jovem e que crescemos brincando juntas, mas minhas memórias não alcançavam essa época. Rose era mais nova do que eu pelo menos uns dois anos, eu tinha quase certeza de que eu não esqueceria de um bebê indiano correndo pelos salões de pedra no meio dos internos.

No fundo, mamãe dizia, ela tinha seus problemas também. Fora internada com mãe pois havia sido diagnosticada com esquizofrenia logo quando criança. A mãe queria ficar com ela e ninguém ofereceu resistência. Eu não sabia se a lei permita tal coisa, porém nunca fui atrás para descobrir. Rose e Maya não incomodavam ninguém.

Além disso, se eu fosse analisar tudo o que estava fora da lei nesse manicômio era mais fácil eu ir na polícia diretamente e entregar a mim e a minha mãe.

"Oi", falei, a voz abafada pelo cabelo grudado na língua. "Está tudo bem, não se preocupe. Dormi mal, só isso".

"Aquele moço de novo?", ela murmurou e sentou no divã. Lentamente comecei a me aprumar. "Está um dia legal lá fora, não acha?".

"Você quer sair? Não tenho ninguém para medicar até às duas", comentei, sentando-me ao pé do divã. Rose mexia os pés nervosamente. Toquei sua pele gelada e fiz um carinho em seu joelho.

"Nada de sair", resmungou. "Talvez a varanda".

"O que vocês têm contra a natureza por aqui?", resmunguei e fiquei de pé. Catei o livro que estava lendo e levei até a estante.

O sol aparecia timidamente pelas nuvens pesadas e parecia quente o suficiente para uma caminhada no gramado. Claro que Rose não iria comigo, mas eu não poderia esperar muito dela. Na verdade, meus dois melhores amigos eram pacientes de uma casa de repouso psiquiátrica então eu não podia esperar nada de ninguém. Que tipo de destino miserável era esse? Queria poder sair com meus antigos colegas de faculdade e escola.

Suspirei.

Rose continuava calada. Normalmente ela falava muito, mas algo a incomodava hoje. Parecia infeliz.

"Nada legal na sala de recreações?", perguntei.

Rose suspirou.

"Sir Benjamin Arthur surtou de novo. Teve um ataque e gritou coisas horríveis para mim e mamãe. Mais uma vez. Não estou surpresa".

Sir Benjamin Arthur era um figurão que nos seus devaneios achava que era um cavaleiro ungido por Henrique VIII. Já o vira surtar diversas versas e sempre descontar em Rose e na mãe. Em várias situações tivemos de sedá-lo por algumas horas. Como era contra o código de convivência tentar convencê-lo de que ele não era da corte do pior rei que a Inglaterra já vira, o chamávamos de Sir em todo canto que ele ia. Era mais fácil assim.

Origens - Pacto de SangueWhere stories live. Discover now