Faltavam dez para o meio dia e eu ainda não havia terminado o meu expediente na cafeteria. Convenientemente os outros empregados sempre se "atrasavam" para assumir seus horários e cá estava eu, sozinha atendendo clientes e mais clientes que pareciam se multiplicar como passe de mágica - como algum tipo de tramoia para me impedir de ir embora, comer algo e partir para a Universidade. Quando eu ainda estava no ensino médio eu morria de medo de fazer algum curso em universidades privadas, minha família não teria dinheiro o suficiente para bancar meu curso (na época sonhava em cursar arqueologia, mas me decidi por licenciatura em história – mais barato e com uma possibilidade de emprego mais realista), eu teria que trabalhar meio expediente para bancar meus sonhos – isso me aterrorizava – estudar, trabalhar, estudar e estudar. Não me conseguia ver nessa rotina por mais que eu tentasse. Não que eu fosse alguém que amasse passar o dia fazendo nada, minha vó sempre dizia "aquele que tem muito tempo livre nunca tem tempo para nada", porém eu não queria abrir mão dos meus hobbies, minhas coisinhas, séries de tv, amigos, etc. No final das contas eu não consegui vaga em nenhuma universidade publica. É, as coisas às vezes não saem como planejamos, mas isso não é nem de longe o fim do mundo. E cá estou eu, já no segundo ano em uma universidade privada e trabalhando meio período. Acabou sendo tranquilo, eu consegui me acostumar à rotina e tenho tempo para minhas coisas. Bem, quero dizer, geralmente tenho. Pois preciso ir almoçar e partir para a universidade, mas a falta de responsabilidade dos meus colegas de trabalho e o vicio em cafeína dos meus clientes estão tentando avacalhar minha preciosa agenda.
Depois de perder meu horário de almoço e me atrasar para chegar a tempo da minha primeira aula, O Diego – responsável pela cafeteria na parte da tarde junto á outra garota que aparentemente se eu fosse depender da chegada dela eu ficaria aqui até às seis da tarde, havia finalmente entrado pela porta dupla da cafeteria, não se preocupando muito em pedir desculpas pelo atraso ou pelo fato de ser o responsável por futuramente fazer minha barriga roncar de fome pelas próximas horas e apenas abriu a boca para soltar algumas frases culpando o transito, dando a entender que ele não tinha culpa do trafego da cidade - verdade, ele não tinha, mas não custaria nada sair mais cedo de casa ou sabe-se lá de onde ele estava.
Troquei o meu uniforme da Cafeteria no banheiro dos empregados, peguei minha bolsa que as pessoas, em geral amigos, haviam apelidado de mala de mendigo - pois era grande, de um amarelo pálido e já estava desbotando e me botei para fora da cafeteria, sentindo um alivio bem próximo daquele que os presidiários sentem ao cumprirem todos os dias de uma sentença. Okay, talvez não seja para tanto, mas honestamente eu não tenho a mínima vontade de descobrir. O céu estava limpo e o clima quente, um meio-dia comum aqui em Goiânia. Nessas horas me sinto abençoada por trabalhar e poder pagar um taxi, uma coisa e acharem sua bolsa semelhante à de um mendigo, outra é você ter o cheiro de um. Mas eu já iria perder a primeira aula de qualquer forma então me botei a procurar algum lugar para comer uma daquelas frituras que faria qualquer nutricionista corar de reprovação. Ao caminhar entre a multidão mal me dei conta que havia começado a chover. Às vezes acontece isso em Goiânia, não sei se é assim também em outros estados, mas desde que assistia um seriado de ficção cientifica sobre um pessoal preso em uma ilha sempre vi como incomum chuvas que começavam do nada - sem trovoes ou nuvens fechando o tempo as anunciando. Claro que não tem nada de incomum, pois se fosse esse o caso os noticiários, jornais e paginas em redes sociais só falariam sobre os tais eventos sobrenaturais. Quando me dei conta que de fato tinha começado a chover tive que correr para algum lugar e me proteger – o dia só estava piorando.
Entrei na primeira loja que me deparei e fui metralhada pelo olhar de desaprovação do dono, como se as poucas gotas de água que tinham sobre o meu corpo fosse inundar sua pequena loja e todos os seus produtos. Ele não precisou falar nada, seu olhar me enxotava e decidi que não iria espera-lo dizer algo. Continuei a correr pela chuva, usando minha bolsa (mala de mendigo) como um guarda-chuva. Avistei um beco, os edifícios entre eles eram tão próximos que seus telhados se encontravam, basicamente não estava molhando ali e eu vi o meu porto seguro. Dali ligaria para uma companhia de taxi ou até mesmo pegaria um Uber e sabe o que mais? Dane-se a universidade, ao menos hoje. Tiraria aquele dia para ficar em casa, não sou de cabular aulas mesmo, pegaria a matéria de hoje com alguém. O beco estava com aquele cheiro gostoso de calçada molhada. Sim, eu acho aquele cheiro gostoso, não saberia explicar do porquê, apenas me faz sentir bem. Antes mesmo de recuperar o meu folego da minha não tão longa, mas cansativa corrida (preciso me matricular em uma academia), eu ainda estava olhando para a rua, sentindo o corpo cansado e já preparando a minha bolsa para pegar o meu celular quando um monte de vozes masculinas surgiram atrás de mim através de uma porta de um dos edifícios que compunham as paredes do beco. Parecia uma discussão, muitas vozes bem enraivadas. Não se demorou a saírem. Eram homens altos, com aparência culta. Alguns trajados com jalecos brancos e outros de roupas pretas e gravatas vermelhas. Os de jaleco pareciam pedir algo, quase que implorar, mas com raiva aos homens de terno preto e gravatas vermelhas – já esses não pareciam ceder. Eu os fitava ainda na ponta do beco. Não senti medo, não eram marginais, todos tinham aparência culta. Os de terno, por exemplo, tinham até gel em seus curtos cabelos. Aquela cena me distraiu, eu não os entedia – tinha a chuva e as vozes calorosas deles, todos ao mesmo tempo, discutindo. Lembrou-me dessas discussões que se tem em redes sociais, acho que se fosse encena-las na vida real seria parecido com o que eu vi. Nem me dei conta que me aproximava deles, eu estava perdida, entretida com aquilo tudo, a chuva batia no chão, os carros passavam. O gélido frio forçado pelo tempo inesperado tocava meus braços e aquela briga mais inesperada que a aquela chuva que apareceu do nada em um dia de sol quente, me deixava entretida quase como uma borboleta quando vê uma luz forte.
Eles não pareciam me notar, mas eu pouco me importava se notavam ou não, nem sei bem porque me aproximava, acho que aquela cena acontecendo tão aleatoriamente de modo tão inesperado me deixou com os pensamentos turvos. Ao me aproximar mais meu pé chutou uma latinha de refrigerante – tão clichê, mas só é clichê porque acontece com frequência. Eles todos se viraram para mim e me fitaram como se estivesse vendo algo que não deveria estar ali. Assim como todas as cenas que começaram a acontecer no momento em que entrei naquele beco, a próxima também foi bem aleatória. Todos eles, como se fossem programados para isso, começaram a gritar e a brigar comigo. Fiquei atônita, comecei a pedir desculpas e a me afastar, andando de costas. Certa vez vi dois seguranças de boate expulsar um cara que havia entrado sem permissão, a cena foi bem parecida. Mas ali era um beco, não uma boate — um edifício privado e não eram dois brutamontes cumprindo seus deveres, eram homens que pareciam cientistas e advogados. Eu senti as lagrimas esquentarem meus olhos, me senti uma pequena criança quebrando a prataria de casa e levando uma bronca dos pais e não uma mulher de vinte anos que não estava fazendo nada de errado.
"Você não pode ficar aqui" "ela ouviu tudo" "tire ela daqui", todas essas frases ecoavam juntas, todas disparadas de rostos raivosos, rostos que, esteticamente falando, eu jamais imaginaria em situações como aquela. Os homens de terno e gravata vermelha me agarraram, me pegaram pelos braços, me segurando forte e ainda desferindo frases duras de reprovação a minha presença ali. Senti-me tão invadida, me senti injustiçada, mas eu não sabia o que fazer, tudo estava acontecendo tão rápido. Eles começaram a me empurrar de volta para a rua "será que não tem ninguém passando nessa maldita rua?" eu pensava. Os homens de jaleco protestaram ao meu aparente banimento do beco publico, "Não, ela pode ter ouvido", "não podemos deixar ela sair, ela vai chamar a policia". Senti um frio agudo se apoderar de minhas entranhas. Era ruim ser enxotada de um lugar, mas era melhor do que ser mantida em cativeiro. Policia? Eles estavam fazendo algo errado? Eu não ouvi nada, mas eles não acreditariam em mim. Minhas lagrimas a essa altura dos acontecimentos caiam sob meu rosto. O estranho é que eu nem percebia que estava chorando, me sentia anestesiada. Se for adrenalina, medo, surpresa ou uma forte combinação disso tudo eu não sei. Eu gritei. Gritei alto, gritei como se eu pudesse expelir meus pulmões pela boca, gritei bem alto 'SOCORRO!!!". Eu não parava de gritar, a chuva não parava de cair e os homens continuavam a discutir.
Meus gritos amedrontaram os homens, mas isso não foi algo bom. Talvez por medo de alguém ouvir meus berros mesmo d'baixo daquela forte chuva. Eles acharam melhor me arrastar para dentro do edifício em que saíram. As piores coisas passaram pela minha cabeça naquele momento e mesmo assim não foi pior do que realmente aconteceu. Era uma sala branca, sem janelas. Não tinha nada ali, nada além de piso branco, paredes brancas e duas portas brancas – a que eu entrei contra a vontade e outra do lado oposto. Eu me debatia, mas era inútil comparado a força daqueles homens, homens que continuavam a discutir, parecia um bando de maritacas loucas, falavam como elas também – eu não entendia quase nada; "Projeto G", "Backup", "Reserva" um monte de palavras soltas no meio de todas aquelas sentenças apagadas pelas vozes se debatendo todas ao mesmo tempo. Uma mulher de uns 30 anos surgiu pela porta oposta a que eu entrei – com cabelo amarrado, usando óculos e jaleco branco. Parecia mais uma atriz pornô do que realmente uma cientista – isso se eles fossem cientistas, eles poderiam ser qualquer coisa e coisas ruins afinal não queriam a policia envolvida. "Essa é a nova cobaia?" a moça perguntou e todos eles se calaram. "Não era para ser, mas agora é". Ela me fitou, me olhando de cima para baixo. "Pegue seus documentos, anestesiem ela e a leve para a Sala C". Eu prontamente ouvindo tudo aquilo comecei a gritar de novo. Eu poderia tentar argumentar, mas do que adiantaria, parecia um sequestro, era um sequestro. Cobaia? Que merda estava acontecendo?
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Projeto G
KurzgeschichtenUm conto de ficção cientifica sobre uma universitária que é raptada por um grupo de cientistas com propósitos desconhecidos.