Aubade

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As manhãs gloriosas de domingo tinham um ar especial ao ver de Chaeyoung. Ela acordava cedo, pontualmente às cinco, antes do nascer do sol, as persianas nunca eram fechadas, pois de forma alguma ela correria o risco de perder o nascer do sol em Seul. A contagem de dias nublados parecia infinita, apesar de vez ou outra o sol dar as graças em meio as espessas nuvens, formando por curtos minutos uma cortina dourada, digna de uma pintura. Na cidade enorme, apenas uma pessoa era capaz de retratar essa vista em uma tela, usando algumas tintas e toda a sua concentração. E essa pessoa levantara mais sonolenta que o normal. As noites em claro sem motivo aparente a estavam tirando a sanidade, quando finalmente conseguia dormir, sonhos sem sentido lhe ocorriam, causando uma dor no peito e por vezes, o choro.

A grande janela ocupava a parede virada a leste, na sacada as pequenas plantas que tomavam conta do chão, parapeito e até da escada de incêndio encontravam-se úmidas por conta do orvalho. A artista já de pé, saiu de seu quarto e encaminhou-se à cozinha. Preparou chá preto, escutando a melodia do bule com água fervente, em seu interior tentava recordar-se do sonho que a acometeu na madrugada daquele mesmo dia.

No fundo de sua mente, um sussurro, ou a lembrança de um sussurro ecoava. Parecia outro idioma, um idioma que ela não conseguia identificar, deveras, nunca tivera contato o suficiente com outras culturas para diferenciar idiomas, tudo soava estranho naquele momento. Sacudiu a cabeça em uma negação, a expressão fechada que fazia para si mesma tentando convencer-se de que não era algo a se preocupar. A mente nublada de quem acaba de acordar pode ser um terreno fértil para ideias confusas e fora do normal, nada novo.

Fez o retorno lento até o cômodo que se misturava entre sala de estar e estúdio, muitos livros sobre o assoalho de madeira desgastado nos lugares exatos em que Chaeng arrastava a cadeira em frente à tela. Próximo aos livros e à mesa de centro, tintas em sua maioria a base de óleo, tiras de madeira e um rolo de tecido para telas que lhe custara os salários dos últimos três meses. Aos olhos de qualquer outra pessoa, aquela era uma bagunça enorme. Mas para a garota de cabelos curtos, era seu ambiente de paz.

Abriu a grande porta de vidro que dava acesso à mesma sacada de seu andar, sendo invadida pelo cheiro de sol. Riu. Cheiro de sol não existe, pelo menos não até aquele momento. Com sua xícara aquecendo as duas mãos, observou minuciosamente cada detalhe que pode capturar da vista. A rua estreita que seguia até onde sua visão lhe permitia ver, várias bicicletas presas à um poste em frente a academia de artes que ela frequentava. Checando o relógio sobre o sofá, que digamos não ser o local mais apropriado para isso, viu passar das cinco e trinta. As pequenas frestas entre as nuvens cinzentas deixavam escorregar entre elas delicadíssimos feixes da luz dourada, a primeira luz do dia encontrava-se com a superfície úmida das estradas estreitas e dos pequenos prédios desordenadamente enfileirados daquele bairro. Usando um dos polegares, mediu descuidada, a proporção dos elementos que lhe enchiam a visão. Começaria a pintar em pouco tempo, mesmo não sabendo se teria a vontade de terminar.

O ponto era: Chaeyoung nunca finalizara uma obra sequer, seja desenho, colagem, escultura, poema ou pintura, a última dita, a qual ela se dedicara quase totalmente, mesmo assim não tendo o bastante para a sua finalização. Sempre lhe faltara algo, talvez coragem de se despedir da sensação de criar algo, ou seja apenas uma falha nos seus acessos à criatividade. Nunca fora constante em nenhum aspecto de sua vida inteira. Durante a infância, fora uma criança muito criativa, contava histórias, mas não as finalizava, não era filha única, mas fora mandada cedo para longe de casa, para estudar em uma instituição de ensino tradicional da Coréia. No final, sentia-se isolada e desestimulada a se ligar com outras pessoas, ou manter vínculos mesmo através de suas histórias criativas. Era como se conduzisse um carro a uma rua que ficasse gradualmente estreita, sem volta ou forma de seguir em frente, o sentindo quase que físico de estar congelado em um momento.
Vestiu o avental manchado e cheio de pincéis nos bolsos, dedicando-se à retratar o pedaço de cidade que lhe abrigava. Permaneceu assim até ouvir a chuva forte cair, interrompendo o fluxo em que a artista seguira nas últimas horas. O sussurro permanecera martelando baixinho, como uma dor que ainda não foi sentida, mas tens a impressão de que chegará a qualquer momento. Voz feminina, leve, soava como uma canção de ninar assustadora.
O relógio agora marcava as 15 horas de um domingo cinzento, frio e... faminto! Chaeyoung ouviu e sentiu seu estômago reivindicando algum alimento, afinal, não se vive apenas de chá, certo? Depois de um banho longo com a água extremamente quente, a artista saiu de seu apartamento com as bochechas ainda avermelhadas pelo calor, trajando um sweater grosso e um par de jeans velhos. Desceu os três lances de escadas, cujos degraus eram alternadamente ornamentados com vasos pequenos de plantas com folhas maiores que os mesmos. Sorriu ao pensar que os três outros moradores do prédio tinham o mesmo tipo base de personalidade que ela, amante das plantas, artistas que nunca pegavam suas correspondências. Lembrou-se pela primeira vez em meses de pegar as suas, abrindo o pequeno compartimento com o número 210, viu um amontoado de cartas pressionadas pela grande quantidade delas contrastados ao pequenino espaço. Pegou todas, jogando-as na sua mochila, sem ler sequer o remetente. Faria isso quando chegasse ao Nagoni, enquanto devorava uma tigela de ramen acompanhado de alguma bebida que a aquecesse.

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