|PRÓLOGO| AO APAGAR A LUZ DA PRIMAVERA

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Tudo começou com um bilhete, deixado timidamente por debaixo da porta da casa dos Morris

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Tudo começou com um bilhete, deixado timidamente por debaixo da porta da casa dos Morris. Lilibet não percebera a presença dele. Pisado, repisado, esquecido e ignorado, depois de sete dias foi notado pela moça. Era um comum papel de carta, fechado num envelope branco — agora irreconhecível pela sujeira imposta —, marcado pelo selo de cera avermelhada. Um A maiúsculo gravado na cera tinha destaque.

A moça tinha o costume de ficar enrolando os cachos das únicas mechas de cabelo que deixava para frente, e fazia exatamente isso enquanto pensava em quem poderia ter enviado o escrito. Na rua 4, onde morava, todo mundo se conhecia. Eram pessoas de descendência nobre. Famílias ricas que, apesar de todo o decoro aparente, gostavam de tomar conta um da vida do outro.

Se fosse tentar descobrir quem era o remetente, ficaria por todo o dia inerte. Nenhum dos moradores da rua tinha iniciais com a letra A. Se não era alguém de lá, poderia ser alguém dos arredores. Apesar da possibilidade, Lilibet não conhecia ninguém fora dali.

A rua 4 era bem extensa e antiga, tendo esse nome vulgar utilizado pelos moradores por décadas, tão repetido que se estendeu às pessoas de fora. Formalmente, chamava-se Little holy place. A despeito de tradições religiosas, até o padre Stevens entendia que a rua 4 não era sagrada de forma alguma.

Como, em um lugar sagrado, os homens largam as esposas toda noite para assistir à apresentação da gata da noite na casa noturna La petit nuit? O que era para ser um lugar de ampla expressão artística e cultural, tornara-se uma boa pedida noturna para os cansados do dia e os adúlteros dos quarteirões.

Não só os homens justificavam a melhor apropriação do nome vulgar. Os bebês da rua 4 já nasciam sabendo que o passatempo favorito de qualquer morador era olhar pela janela para a casa do vizinho, apurar os ouvidos no esforço de captar qualquer discussão, fazer uma visita surpresa como quem não sabe das novidades mesmo que já saiba de tudo, e elogiar até o prato mais repulsivo.

Lilibet era só mais uma das moradoras da rua. Via-se atrasada para a aula de piano, por isso colocou o bilhete intrigante na bolsa de mão e saiu de casa. Deu olá para o dia ensolarado, e cumprimentou as pessoas que via nas calçadas.

Como boa residente, ouviu conversas cortadas no caminho:

—... Um dia vão revelar quem é a gata da noite...

—...Estou dizendo, o mundo está perdido. Estamos no final, quando chegarmos aos anos 2000, vai tudo acabar. Faltam só 72 anos!...

— A gata da noite pode ser um homem...

Tais afirmações não tinham efeito algum em seus pensamentos. Homens só sabiam falar da tal gata da noite, figura feminina e jovem que os encantava diariamente.

Mais adiante, senhoras conversavam sobre futilidades:

— ...Oh, não vejo tantas jóias desde que me mandaram o espólio do meu marido, lá do RMS Titanic...

Sobreviventes da rua 4 [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora