2. PORTO ALEGRE, BRASIL, 5 DE MARÇO DE 2012

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Laurinha odiava o que o seu corpo estava se tornando. Era como se um inimigo secreto tramasse em seu interior, fazendo-a mudar, deformando-a
inteira. Não bastassem as coisas da vida sobre as quais ela não podia ter o mais vago controle, apavorando-a continuamente, agora era seu próprio corpo o elemento incômodo. Passar despercebida – coisa que ela sempre apreciara – não era mais uma opção. Truques baratos e básicos, como apertar aqueles seios cada vez maiores com uma faixa, não funcionavam mais. Seria preciso que ela se ensacasse numa embalagem de amianto, se não quisesse ser notada. Tudo em Laura era superlativo, os mínimos detalhes eram assaltantes da atenção alheia.
Sua boca carnuda, invejada por mulheres mais velhas (Igualzinha à da Angelina Jolie! – diziam), era um acinte. Até o diretor do colégio, ao falar com ela, não tirava os olhos de sua boca.

Laurinha não parava de esticar. Não para os lados, como gostaria, pois imaginava a gordura como um campo de força bem mais eficiente que um saco de amianto. Desconfiava, porém, que nem assim seria deixada em paz. Apenas deixaria de ser “a mulher gigante” e passaria a ser “a balofa”, o que, considerando sua situação, não deixaria de lhe conceder uma pequena vantagem: os meninos parariam de querer usá-la. O fato é que Laurinha cada vez mais merecia menos ser chamada de “inha”, pois esticava para o alto e avante!, conforme brincavam as outras meninas da escola. Numa idade em que toda diferença será motivo para perseguição cruel, nenhum exagero é perdoado: os
muito gordos ou muito magros, os muito altos ou muito baixos, os muito burros ou muito inteligentes. Para passar despercebido, era necessário ser mediano. Coisa que ela decididamente não era. Não mais.

Laura se sentia um monstro destruidor de armários, já que a cada dois meses suas próprias roupas não mais lhe cabiam. Era como se seu maldito corpo
quisesse ser exibido. Num dia a camisa lhe cobria o baixo ventre e, subitamente, duas semanas depois, lá estava ela com o umbigo de fora, descobrindo a
contragosto que até para aquele buraco ridículo na barriga os homens costumavam olhar. Diante desse cenário, já que não tinha dinheiro para comprar
roupas de nova numeração, era impossível se manter anônima.

As mudanças físicas, naturais nos pré-adolescentes, haviam disparado por coincidência alguns dias após a morte da mãe de Laurinha, de modo que ela havia criado um falso nexo causal entre uma coisa e outra. Não satisfeita em lhe tirar a mãe, a existência agora insistia em lhe roubar o corpo, fazendo seus seios crescerem, seu corpo se agigantar, seus lábios incharem como numa reação alérgica.

E havia, é claro, o problema do cheiro. Laurinha podia senti-lo se espalhar incontrolável como uma aura em torno de si, e sabia muito bem que poderia se vestir com um gigantesco saco de batatas que nada impediria tal
cheiro. Aquele odor sutil, porém irresistível, que fazia as pupilas dos homens dilatarem e suas narinas pulsarem, tais quais as de um gato a farejar uma lata de
sardinha aberta e convidativa. Acima de tudo, Laurinha odiava aquele cheiro, mas descobriu que passar horas no banho se esfregando com sabonete de enxofre não mudava nada além das contas de água e luz.

Os meninos mais velhos não cessavam de assediá-la, forçando-a afazer “coisas sujas” que ela não queria. Não sabia como culpá-los, já que ela mesma achava, em seu raciocínio torto, que a culpa era dela e de seu cheiro. Ela era a lata de sardinha aberta. Os meninos eram os gatos. Ponto final. Não queria fazer nada daquilo, mas fazia, por motivos tão variados quanto confusos, que misturavam desejo de aceitação com uma estranha fantasia de estar cumprindo
sua função na ordem natural das coisas.

Laurinha Boquete, Laurinha Boquete, riam-se os meninos, ironizando seu sobrenome italiano – Boccardo. Ela não sabia direito o que vinha a ser um boquete, mas imaginava que não seria coisa boa e com certeza deveria ter a ver com sua boca indecente.

Desde que fora agarrada pelo primeiro garoto (Gabriel, o garoto musculoso do nono ano) e praticamente forçada a chupá-lo, Laurinha entrara num ciclo vicioso que lhe parecia inescapável. Depois que o rapaz fez questão de compartilhar com seus colegas toda a experiência com a garota, ela se vira na contínua situação de ser chantageada pelos outros. Se não chupar o meu também, digo pro diretor contar pro seu pai que você é Laurinha Boquete, intimavam.

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⏰ Última atualização: Dec 02, 2018 ⏰

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