0. CERRO TOLOLO, CHILE, INVERNO DE 1993

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Era uma noite fria e estrelada, excelente para dormir, mas Gustavo Porto de Mello não conseguiria descansar nem se tomasse remédio. Ele continuava a achar que estava de algum modo se enganando, e isso o irritava demais, tirando-lhe o sono. Após checar nove vezes os sofisticados instrumentos
do observatório e comparar os resultados com os estudos pregressos sobre temperaturas, composições químicas e luminosidades estelares, mantinha-se ferreamente atado ao seu tradicional ceticismo. O que para muitos seria apenas
teimosia, para Gustavo era uma necessária virtude: cautela. Astronomia é uma ciência repleta de complicadas sutilezas, e qualquer mínimo erro de cálculo ou interpretação pode conduzir a resultados equivocados. Já tinha visto muito disso em seus anos de profissão, e não estava nem um pouco disposto a ser pego em
erros primários. Portanto, não achou que seria perda de tempo checar todos os dados uma décima vez. Auxiliado por quantidades consideráveis de café, o astrônomo se pôs a analisar novamente o espectro daquela estrela por toda a
madrugada.

Seria impossível ignorar a beleza das constelações vistas a partir de Cerro Tololo. Sem a tão comum poluição luminosa dos grandes centros urbanos,
o céu do interior chileno seria capaz de emocionar a menos sensível das almas.

Bastaria olhar para cima por alguns minutos e se deleitar com a generosa luz das estrelas. Antares, já normalmente exuberante em brilho a ponto de rivalizar com o planeta Marte, em Cerro Tololo chegava a parecer um distante farol
avermelhado.

Todavia, a despeito da presença de tantos astros cintilantes e
chamativos, o que realmente interessava a Gustavo era um corpo estelar insignificante e quase invisível a olho nu, conhecido pelo insosso nome de HR 6060. Seu brilho aparente era tão fraco que fazia essa estrela sequer ser digna de um nome próprio mais especial e marcante, como nos casos das famosas Antares, Aldebaran, Capella, Sirius ou Vega. HR 6060 era apenas mais uma estrela dentre as tantas outras da Constelação do Escorpião, e apenas a décima-oitava em brilho. Para ser vista a olho nu, seria necessário ir para um lugar bem afastado das luzes da cidade, como no caso de Cerro Tololo, além de ter visão perfeita. Ou usar binóculos. Sob diversos aspectos, a palidez daquele astro era incapaz de inspirar poetas ou instigar mitologias.

Não havia lendas e cânticos em torno de HR 6060.

Mas Gustavo possuía uma vantagem que o distinguia da maioria das pessoas: seu ofício lhe permitia usar olhos mecânicos capazes de revelar algo que fazia aquele brilho irrisório ser mais espetacular que Antares e mais digno de
atenção que a brilhante Sirius. Considerando o que a ciência lhe permitia constatar, HR 6060 talvez fosse uma das mais importantes luzes do céu noturno.

– Te peguei! – comemorou Gustavo, perplexo diante do que seus instrumentos lhe revelavam.

Após analisar pela décima vez a temperatura superficial, a atividade cromosférica, a aceleração da gravidade na superfície, a composição química, a idade, a massa, a luminosidade e a velocidade de rotação de HR 6060 e sobretudo considerar as incertezas de todos os cálculos e instrumentos, Gustavo se deu por vencido. Esboçou um sorriso e percebeu que suas mãos formigavam de excitação. Ele havia encontrado o que tantos procuravam: uma agulha estelar no vasto palheiro celeste.

Precisava contar a novidade para o Projeto SETI.

                           🍂

Tão logo interceptou a comunicação entre os observatórios de Cerro Tololo e Arecibo, Helena contatou Ravi pelos canais seguros, a fim de lhe contar a desagradável novidade. Irritada, deuse conta da ausência de preocupação por parte do doutor. Considerando tudo o que estava em jogo, como ele poderia se manter tão plácido?

– Com todo respeito, acho que você não percebe as implicações da descoberta do tal Gustavo – exasperou-se Helena.

O doutor Ravi Chandrasekhar sentiu vontade de rir, mas
respeitosamente não o fez. Compreendia a ansiedade de sua tão querida amiga, ainda que tais preocupações soassem um pouco ofensivas. Helena, afinal de
contas, era a pessoa mais próxima a ele e deveria conhecê-lo melhor do que parecia.

Dezoito de EscorpiãoOnde histórias criam vida. Descubra agora