Prólogo
Eu não nasci sabendo meu lugar no mundo. Na verdade eu não me via em lugar algum. Eu não me identificava com as mulheres das revistas, com as personagens dos livros ou com minhas coleguinhas na escola particular que meus pais me colocaram. Ainda criança, eu ficava perguntando aos meus pais: "Por que nenhuma delas é negra, como eu? Por que seus cabelos não são enrolados ou crespos?" Com o tempo, eu entendi que estava fora dos padrões que estabeleciam para uma "bela mulher" na sociedade atual – ou em qualquer anterior na qual a mulher negra era colocada em segundo plano. Eu entendi o significado dos cochichos quando eu chegava na sala de aula no ensino fundamental, entendi a cara de nojo das garotas no ensino médio e o recuo visível que os garotos tinham em relação a mim. Porém, esses pequenos – mas profundos – julgamentos não me fez acreditar que o problema sou eu. Se não me aceitam, o problema é deles e delas. Afinal, não seria com a opinião dessas pessoas que eu entenderia meu lugar no mundo.
E definitivamente não foi.
Hoje eu sou vice-presidente de uma das maiores editoras do país, abaixo apenas do viúvo da fundadora, um senhor exigente, competente e inteligente, o melhor chefe que eu poderia ter. Pelas minhas mãos passaram, antes mesmo de chegarem às livrarias, alguns dos maiores best-sellers reconhecidos nacional e internacionalmente. Alguns especulavam que se um livro passasse pelas minhas mãos era sinal de que venderia bem. E eu não preciso de ninguém para dizer que eu sou a melhor no mercado editorial atual.
Depois de divagar por um tempo sobre meu passado enquanto me vejo na capa da revista Atrevida pelo meu tablet, desvio meu olhar para céu através da janela, a cidade abaixo de mim. Muitos não esperavam que eu chegasse onde estou, eu mesma não esperava. E agora eu estou aqui. Balanço a cabeça e esboça um sorriso atípico. Isso não devia soar tão incrédulo. Isso só soa incrédulo por causa da sociedade preconceituosa em que vivemos.
Imagina: Uma mulher, negra, ser vice-presidente da Editora Celeste? Impossível, diriam – e disseram muitas vezes –, mas não para mim.
O telefone toca sobre minha mesa, às minhas costas. Com um movimento, giro sobre minha cadeira e agarro o gancho, largando o tablet sobre minha agenda.
— Manuela — digo, assumindo uma postura séria.
— Senhora Medeiros, o senhor Braga está na sala de reuniões lhe aguardando com os outros acionistas — Nina, minha secretária, avisa, fazendo-me empurrar o tablet a fim de ver meus horários na agenda. "Reunião com Hélio e os acionistas", sem mais informações.
— Hélio enviou o conteúdo da reunião? — questiono e me levanto com o telefone sem fio.
Ando até o sofá vermelho da sala, no canto da minha sala e pego meu blazer, passando-o pelos ombros.
— Não, senhora, apenas pediu para lhe avisar que a reunião está para começar — ela diz minimamente aflita, porém sabe que eu não reclamaria com Hélio deixá-la às cegas mais uma vez, não era culpa de Nina.
Nina é a secretária mais eficiente daqui, e eu preciso dela como preciso de um café forte e sem açúcar ao acordar.
— Certo. Você irá me acompanhar com sua agenda, espere-me na porta da sala de reuniões — ordeno e desligo. Com um estalo, coloco o telefone em seu devido lugar e pego meu celular pessoal.
Ajeito minha saia lápis azul petróleo e a blusa branca, pego minha agenda e a característica caneta, sem saber com precisão o que levar para a reunião, olho em volta uma última vez e tão logo caminho sobre meus saltos pretos de sola vermelha até o andar superior, onde fica a sala de reuniões. No caminho, encontro algumas pessoas e no elevador e as cumprimento com um aceno.
À frente da porta, está Nina, com a agenda que pedi e seu tablet, mas não está sozinha. Um corpo musculoso cobre o pequeno corpo da minha secretária, cercando-a. Meus olhos semicerram e eu me aproximo mais, balançando a cabeça. Era só o que meu faltava nesta sexta-feira. Um perdido dentro da editora, importunando minha secretária.
— Com licença, senhor! — falo em alto e bom tom, incitando o homem a se virar e minha secretária a se sobressaltar, assustada. — Estou atrapalhando algo? — questiono, olhando dentro dos olhos de um incrível azul escuros dele, desviando apenas uma vez para ordenar, silenciosamente, para que Nina entre logo na sala.
Ela o faz sem protestar, quase correndo. É então que noto que o homem não está perdido, muito pelo contrário, aparenta saber exatamente onde está, isso me faz erguer uma das sobrancelhas e cruzar os braços.
— Na verdade, atrapalhou, porém não importa. E você, quem é? — ele pergunta, estendendo a mão – grande. Faço o mesmo, por educação, descruzando os braços, porém, diferente do esperado, ele beija o dorso da minha mão demoradamente. Clichê.
— Manuela Medeiros, vice-presidente da Editora Celeste, onde você se encontra. — Puxo minha mão, deixando-a do lado do corpo. Com estranheza, o local do beijo começou a coçar, no entanto, eu sei disfarçar bem. — E se puder, gostaria que me desse licença, tenho uma reunião nesta sala, agora.
— Ora, que mais bela coincidência! Enzo Braga, e também tenho uma reunião aqui, com meu avô, Hélio Braga, presidente e maior acionista da Editora Celeste, onde nós nos encontramos. — O quê? Avô? Diante da minha provável expressão de espanto, ele sorri cafajeste, e se posta do outro lado da porta, abrindo-a para mim. — Senhorita Medeiros.
Ainda sem acreditar, mas adotando uma postura ereta, agradeço a gentileza com um aceno de cabeça e passo pela porta. A sala está cheia, e se não fosse pelo meu autocontrole adquirido com o tempo, eu estaria com as bochechas em chamas, já que os olhares dos presentes se encontram destinados a mim e ao homem que me fez atrasar.
E eu odeio atrasos.
— Manu, que bom que resolveu entrar para se juntar a nós — Hélio brinca, olhando-me carinhosamente e eu lhe cedo um breve sorriso. Com sua fala, percebo que ele havia notado a confusão que seu neto causou há pouco. — Sente-se, por favor.
— Já estaria aqui há muito tempo se não fosse por um incômodo, ainda na porta — ironizo, sem olhar para trás, porém sei que estou sendo seguida. Alguns acionistas escondem e guardam para si uma gargalha e agora sei o motivo dos olhares quando entrei. — Senhoras, senhores. — Aceno para os outros acionistas e seus secretários.
— Vovô — Enzo cumprimenta. Sua voz se sobressai atrás de mim, causando-me um arrepio por ela estar mais firme e grossa, agora.— Senhores, senhoras.
— Qual é a pauta do dia? — pergunto, enfim.
Sento-me na cadeira ao lado direito de Hélio, noto Nina a alguns metros, acomodada em uma poltrona encostada na parede. Às minhas costas, o "sou neto do dono" passa e senta-se na cadeira do lado esquerdo, de frente para mim, já que estamos na ponta e Hélio ocupa a cabeceira.
— Minha aposentadoria.
Se gostou, não se esqueça de votar clicando na estrela, isso faz com que outras pessoas conheçam a história!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Além da Presidência (Degustação)
RomansaA vida é carregada com pequenas ou grandes disputas diárias, a cada dia somos postos a prova, sendo obrigados a travar novas batalhas e a não se deixar abater por uma derrota, afinal, após a noite, um novo dia vem. O velho presidente da Editora Cele...