Palmo 3: Ameixas

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Ele já esteve aqui.

Quando o carro estaciona no meio-fio em frente ao prédio, Álvaro está em completo silêncio. Eu me despeço do motorista, que nos lembra de avaliá-lo no aplicativo com um sorriso contido, e abro a porta. O ar noturno, quente e úmido, rasteja por debaixo da minha roupa, fazendo suor se acumular no colarinho da camisa e nas palmas das mãos. Álvaro se junta a mim sem produzir nenhum barulho. Eu o encontro pelo canto dos olhos, a face obscurecida pelas sombras da noite.

Seco o suor das mãos nas calças, toco o interfone. Seu Zé destrava o portão e eu me coloco de lado, liberando a passagem para Álvaro. Os passos de Álvaro ecoam no hall quase deserto do meu prédio, cada batida do salto de seus sapatos martelando nos meus ouvidos e incentivando o suor a escorrer pelas têmporas.

Enquanto aguardamos o elevador em meio aos rangidos com os quais eu já me acostumei, flagro o reflexo de Seu Zé nos observando por cima da leitura de seu livro. Ainda que distorcido, consigo ver a maneira como seus olhos se espremem na direção de Álvaro, como se o reconhecesse.

O ar ao nosso redor fica cada vez mais denso conforme o elevador se aproxima do sexto andar. Quase posso sentir Álvaro disparando olhares pelo corredor, demorando-se nos números negros sobre a porta do 610, os músculos dos ombros tensos.

Enfio a mão trêmula no bolso e saco as chaves. Enquanto luto para encaixar a chave na tranca, meu estômago se aperta e o ar arranha a garganta quando eu respiro. Com um clique, destranco a porta e a empurro para dentro, as dobradiças rangendo até miarem com um assobio sufocado.

Lambo os lábios e me viro para Álvaro, engolindo saliva. Ele não se move, sequer olha para mim. Dou um passo para dentro do apartamento, sentindo-me pela primeira vez deslocado em minha própria casa, e, devagar, pego na mão de Álvaro, guiando-o até mim. Desta vez, ele se mexe. Os passos são contidos, receosos, como os de um animal ao adentrar um local desconhecido pela primeira vez. Contudo, está longe de ser a primeira vez de Álvaro no apartamento 610 do prédio cinza; ainda que ele jamais tenha vindo ao meu apartamento, Álvaro o estuda, conhecendo-o e reconhecendo-o. Seus dedos passeiam pela superfície lisa o balcão da cozinha, dando a volta na ilha e tocando a pia, as panelas penduradas nos ganchos, os frascos de temperos e a geladeira. Depois, os estalidos dos sapatos no linóleo o levam até a sala de estar. Álvaro caminha por entre os móveis, a cabeça baixa, como que medindo a distância entre eles. Mais uma vez, seus dedos voltam a tocar os móveis, fechando-se nas almofadas de cada um dos sofás, e percorrendo as lombadas dos livros na estante.

Álvaro passa um bom tempo avaliando o apartamento, quando para de repente, ao lado da porta que leva ao meu quarto. Ele gira a cabeça para me olhar, e seu olhar faz minhas bochechas arderem de tal modo que desvio para as janelas, onde a lua crescente brilha contra um céu sem estrelas.

"O apartamento está diferente. Mais cheio, mais... alegre. É como se fosse outro," Álvaro diz com naturalidade. O calor que irradia do seu corpo faz com que minhas mãos voltem a tremer quando ele se junta a mim, de pé ao lado da janela, mirando o trânsito espaçado de carros na rodovia mais próxima. Álvaro espalma minha lombar por sobre a roupa. "É por isso que resistiu quando pedi para vir aqui? Porque era a casa dele?"

"Uma coisa é descobrir que você está saindo com um parente dele," eu digo, depois de um tempo calado. "Descobrir que esse mesmo parente mora no antigo apartamento dele parece um pouco de coincidência demais, você não acha?"

A mão de Álvaro sobe por debaixo do meu paletó, seu braço enrolando-se na minha cintura, me trazendo para perto de si.

"Eu não acredito em coincidências."

Aqui jaz João SantiagoOnde histórias criam vida. Descubra agora