II- Desconhecidos

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Não tive escolha senão seguir aquela voz desconhecida. Corri, desviando-me dos corpos espalhados pelo chão. O cheiro a morte impregnava o ar, tornando cada respiração mais pesada, mais sufocante.

Podia ser uma armadilha. Talvez fossem sobreviventes mais fortes, prontos para se aproveitarem da nossa vulnerabilidade. Mas, no fundo, o que tínhamos nós para oferecer em troca?

Alimentos e armas… Era óbvio que a ajuda deles não viria sem um preço.

A sobrevivência resumia-se agora a isso, quem tem, sobrevive. Quem não tem, morre. A lei do mais forte imperava, e a troca tornara-se a única moeda de valor. Mas, naquele momento, nada disso importava. Se aquilo significava uma hipótese de viver mais um dia, então estava disposta a pagar o preço.

...

No início de tudo isto, quando a sobrevivência deixou de ser apenas um pensamento distante e se tornou um hábito, tomámos finalmente coragem para abandonar a nossa casa e enfrentar o mundo devastado. Foi então que fomos assaltados… por antigos vizinhos nossos.

Lembram-se daquele menino de quem vos falei? Aquele que tentei salvar a vida, mas foi em vão? Pois bem, os pais dele, juntamente com o irmão mais velho, apontaram-nos uma arma e ameaçaram matar o meu irmão se não lhes déssemos tudo o que tínhamos.

Naquele momento, eu compreendi. Era uma questão de vida ou de morte. Mas sabem o que aprendi nesse dia? Que nem sempre podemos confiar nos nossos amigos, vizinhos ou até nas pessoas que conhecemos desde sempre. A necessidade transforma até o mais bondoso dos homens num predador.

Foi por isso que hesitei tanto. Mas, no fim, decidi aceitar a ajuda daqueles desconhecidos… porque acreditei que o meu irmão já estivesse com eles.

— Segue-nos, vamos levar-te para um lugar seguro. — disse o estranho que me salvara a vida. A sua voz era serena, firme e convincente. Mas, em tempos de desespero, até um demónio pode parecer convincente.

Eram oito ao todo. Três raparigas e cinco rapazes, todos vestidos com capas negras. Não pareciam um culto macabro prestes a nos sacrificar depois de nos salvar… Mas quantas vezes as aparências não enganaram?

Engoli em seco, tentando manter a compostura, mas a única coisa que realmente me importava naquele momento era o paradeiro do meu irmão.

— Obrigada pela ajuda… mas o mais importante. Onde está o meu irmão? — perguntei, a voz fria, séria, carregada de preocupação.

— Não posso deixar o meu irmão sozinho! — gritei, o desespero a apertar-me o peito como um nó sufocante. Ele é a minha responsabilidade. Deve estar preso, assustado... Porque morto, recuso-me a aceitar essa hipótese. Nem sequer a posso considerar.

Tentei voltar para trás, mas mal dei um passo, duas raparigas agarraram-me pelos braços, impedindo-me de seguir caminho.

— Se voltares, morres. — disse uma delas, uma rapariga de cabelos castanhos, a voz serena, mas carregada de certeza.

Debati-me por um instante, mas o aperto delas não cedeu. O homem que me salvara aproximou-se e olhou-me nos olhos.

— Anda, vem connosco para um sítio seguro. Prometo-te que vamos voltar para procurar o teu irmão. — Disse ele, levantando o dedo mindinho num gesto infantil de promessa, o que me apanhou de surpresa. Talvez fosse o líder do grupo.

Soltei um riso irónico, incapaz de esconder a desconfiança.

— E porque é que eu deveria confiar em vocês? Na vossa palavra? Como sei que não estão apenas a dizer isso para me levar com vocês?

Vozes Entre Ruínas || Volume IOnde histórias criam vida. Descubra agora