Um - Luiz

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Minhas manhãs sempre começaram cedo. Meus pais me acostumaram a isso. Minhas irmãs sempre detestaram, mas nunca reclamei. Particularmente, sempre gostei das manhãs.

Mas, desde que flagrei duas meninas fuçando meu quarto em Elay, as manhãs são a parte que mais temo.

Acordar para encarar o clima de guerra que vivemos, para planejar estratégias - essa é só uma das partes ruins. A pior de todas é levantar pensando que muitos dos que estão comigo podem não estar mais vivos quando eu for me deitar novamente.

Beberico o café ainda fumegante na minha caneca feita de alumínio que deixa tudo com gosto ruim. A conversa ao meu redor é intensa, como sempre é. O refeitório está vibrando em discussões e risadas. Cada som explode dentro da minha cabeça como se todos estivessem gritando.

Nem parece que menos de uma semana atrás quase todas aquelas pessoas estavam lutando para conquistar o último prédio que ainda pertencia ao governo de Halles no centro de Elay.

Quanto mais tempo passo lutando na guerra, mais compreendo e enxergo peculiaridades do ser. De serem. De sermos.

Por mais danos que uma guerra cause, sempre nos levantamos, sempre tentamos apagar o que passou e seguir em frente. É o curso da vida, afinal. Seguir. Os que não acompanham o fluxo ficam para trás. E ficar para trás é perigoso demais para qualquer um querer isso. Já pensei em ficar para trás, mas não me deixaram. Eu não me deixei.

É outra coisa interessante a se observar. Quando em grupo, ninguém deixa ninguém para trás. Por mais que seja mais fácil, por mais que a pessoa seja um peso para o restante do grupo, ele vai ser carregado até o fim. A maioria das pessoas nesse refeitório só está aqui porque alguém não desistiu. Porque alguém suportou o peso.

Olho ao redor, para as pessoas que estão comigo à mesa. No nosso caso, sou eu quem suporta o peso na maioria das vezes.

Não me incomodo. Tomei essa responsabilidade para mim. Assumi o lugar que antes seria da Pâmela.

Ao pensar nela, uma careta se forma em meu rosto. Levanto os olhos e pego Diego me encarando. Só ele conhece a razão dessa careta, que rapidamente desaparece.

Nos olhamos por um momento, entendendo e compartilhando a dor que sentimos. Nós dois não temos lidado bem com ela nos últimos 12 meses. A diferença entre nós é que eu sei disfarçar e usei a morte da Pâmela como combustível para a guerra. Diego deixou que a dor dele o consumisse e destruísse, de dentro para fora, gradativamente.

Ao olhar no fundo dos olhos dele, quase não vejo vestígios do bravo soldado que ele foi um dia.

Não posso evitar me sentir culpado. Tenho que cuidar deles. Não somente impedir que morram, mas cuidar para que estejam bem internamente. Meu esforço não foi em vão com os outros, mas quando se trata de Diego, eu falho toda vez que tento me aproximar. Talvez seja falta de tato. Ou talvez ele me odeie. Talvez ele odeie todos nós.

Sinto uma mão no meu ombro e uma boca se aproxima do meu ouvido.

- Victor quer te ver agora. Sala de comando - o soldado sussurra.

Balanço a cabeça uma vez, para mostrar que entendi, e o soldado se vai, desaparecendo entre a multidão no refeitório.

O grupo à mesa para todas as conversas e me encara, esperando que eu diga o que está acontecendo.

Dou de ombros - Victor quer me ver - me levanto - Qualquer novidade eu digo a vocês.

- Não devem ser novidades boas - Bruna murmura.

- Não deve ser nada - faço pouco caso - Nos vemos em breve.

Como sempre faço, minto para poupá-los. Mas minhas palavras já não bastam. O grupo já tomou consciência de que eu os excluo de muitas coisas.

Bruna provavelmente está certa. Não são novidades boas. Nunca são novidades boas.

Saio do refeitório sentindo, não só os olhares das pessoas que estavam comigo à mesa, mas de muitos outros soldados presentes no cômodo, queimando nas minhas costas.

Não olho para trás, mas posso ouvir que o burburinho se intensifica a medida que me afasto.

As conjecturas vão começar. O medo vai se espalhar. Espero que nada disso cause uma revolta contra Victor ou nós.

Entro no elevador, aperto o botão de número 20, o andar onde fica a sala de comando, e encosto-me à parede de aço escovado do elevador e espero ele subir.

Uma única nota musical soa quando o elevador abre as portas, indicando que cheguei.

Já faz um ano, e eu e Victor somos bem amigos agora, mas sempre fico nervoso quando subo a esse andar sozinho.

Abro a porta sem bater e encaro Victor, sentado de costas para a porta, encarando a grande janela que dá vista para o estado.

Limpo a garganta para chamar a atenção dele, depois que se passou um minuto e ele não se moveu.

Victor se vira, distraído, e sorri.

- Olá, meu amigo - ele murmura - Desculpe interromper seu café da manhã.

Cruzo os braços - Tudo bem. Algum problema?

- Acabamos de receber isso - ele pega um envelope (que eu nem tinha reparado que estava lá) de cima da mesa - Ainda está lacrado - ele estende a mão, me entregando.

Assim que tomo em minhas mãos, reparo no endereço que está escrito na parte da frente do envelope:

Zona 6, Herth, Aurélia.

- É de Aurélia - digo, rompendo o lacre para pegar o conteúdo.

- É da sua família - ele murmura. O encaro, arregalando os olhos. 

Me apresso para ver o que tem dentro do envelope, mas ele me interrompe, segurando minhas mãos. Olho para ele.

- Sei que não importa o que estiver dentro desse envelope, isso vai te fazer querer ir para Aurélia. Mas eu quero te pedir, por favor, não vá. Podemos continuar protegendo a sua família. Eu preciso de você aqui – ele pede.

- Victor, você tem milhares de soldados aqui. Não vou fazer falta.

- Não é disso que eu estou falando - o olho novamente, e quando ele me olha de volta, consigo ver a intenção por trás das palavras dele.

Engulo a seco e sinto um aperto no estômago.

- Victor, eu... - começo, com a voz baixa - Você sabe que eu gosto de você, mas não desse jeito. Somos amigos. E eu... A questão é que eu ainda amo Camille. Incondicionalmente. Não tem espaço no meu coração para mais ninguém. Se a situação fosse outra...

Ele dá uma risada - A situação é outra, Luiz. Camille está morta. Mas eu entendo, você... - ele suspira e dá de ombros.

- Talvez um dia - murmuro, pegando o envelope novamente.

- Não me dê falsas esperanças - nos encaramos por um momento - Abra logo esse envelope.

Desvio os olhos dele para o papel que seguro em minhas mãos, mas ele está certo. Não importa o que esteja naquele envelope, eu vou atrás da minha família.

Espero uma carta, mas o que encontro são fotos e arquivos.

A respiração fica presa na garganta, e as lágrimas saltam dos meus olhos antes de eu ter chance de pará-las.

Olho para Victor, que parece assustado pela minha reação. Antes que ele faça qualquer pergunta, eu digo:

- Temos que ir para Aurélia. Temos que ir agora


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Em breve. 

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⏰ Last updated: Dec 13, 2018 ⏰

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O ano da Proclamação (EM BREVE)Where stories live. Discover now