Ainda faltava acrescentar sal a gosto no quiabo e colocá-lo em uma tigela de servir quando a grande convidada de honra daquele jantar chegou. A mãe de Daniel e Natália, a dona Ângela, abriu a porta da frente, carregando a filha mais nova, Aline, apoiada na cintura. A pequena tinha já seus quase cinco anos e era mais pesada do que se supunha, mas a mãe estava em um momento frágil de sua vida e não reclamava de poder ter sua filhinha tão perto.
— Enrola ela! — Natália sussurrou para Daniel. — Não deixa ela entrar na cozinha!
— Hummmm, que cheiro é esse? — Ângela perguntou em voz alta.
Daniel correu para interceptar a mãe na entrada da casa.
— Quem tá aí? — dona Ângela quis saber, olhando desconfiada para o filho.
— Ninguém — Daniel respondeu. — Só eu e a Natália.
Ângela colocou Aline no chão e a garotinha saiu correndo em direção à cozinha. Quando a mãe tentou fazer o mesmo, Daniel segurou-a com um abraço.
— Que isso, Daniel?
— Nada, ué. Não posso nem mais abraçar minha mãe agora? — ele perguntou, ainda a apertando forte.
Ela parou de resistir e retribuiu o abraço, contente por aquela súbita — ainda que misteriosa — demonstração de carinho por parte de seu filho do meio.
— Podem ir se sentar! — Natália gritou da cozinha.
Daniel sorriu e, se afastando do abraço, puxou a mãe pela mão até a mesa de jantar.
— Por que tá tudo arrumado? — Ângela questionou. — Que que tá acontecendo?
Daniel puxou a cadeira da ponta da mesa e fez sinal para que a mãe se sentasse. Aline apareceu na sala em seguida, tendo sida instruída pela irmã mais velha a se sentar à mesa e esperar a surpresa. Daniel se sentou na frente de sua irmãzinha.
Por último, Natália apareceu no recinto, carregando uma tigela com sua receita ideal e seus quiabos perfeitos.
— Isso é quiabo? — Ângela perguntou, meio desconfiada.
— Boa noite a todos. — Natália fez cerimônia, colocando a tigela sobre um apoio na mesa e cruzando os braços atrás das costas em formalidade. — Sejam todos bem-vindos a esse jantar especial preparado com muito amor e carinho.
Aline espichou a mão para roubar um dos quiabos, mas Daniel a espantou com um tapinha no pulso, fazendo uma cara séria e apontando para Natália.
— Presta atenção, Lininha.
— Queria agradecer nossa convidada de honra por nos prestigiar com sua presença — Natália continuou falando. — Obrigada, dona Ângela. Espero que goste.
A mãe estava comovida, de verdade.
Quiabo era sua comida de conforto. Era seu porto seguro. E, meu Deus, depois de tantos dias terríveis, ela certamente merecia aquilo.
Nem importava se a comida estava de fato boa ou não. Ela sabia que a filha mais velha não era lá essas coisas na cozinha. Ainda se lembrava com clareza desesperadora do dia em que Natália havia tentado fazer arroz e queimou um pano de prato. Também era difícil apagar a memória de quando a filha tinha inventado de usar a panela de pressão, mesmo porque algumas das manchas do molho explodido nunca tinham saído totalmente da parede branca.
Mas não fazia diferença se aquele quiabo estava ou não intragável. Ângela só estava feliz, se sentindo acolhida e orgulhosa da própria família. Completamente emocionada. Apertou os lábios e permitiu que Daniel servisse um pouco do quiabo em seu prato.
Quando todos estavam servidos, espetaram com seus garfos o primeiro quiabo mais ou menos ao mesmo tempo. Claro que Aline, a pequena afobada, comeu o seu antes de todo mundo, mas os outros tentaram segurar o ritmo para colocarem o vegetal na boca todos juntos.
— Hummmmm!!! — Aline gritou, falando de boca cheia. — É o quiabo da vovó!!!!!
As palavras da filha mais nova só fizeram completo sentido quando o gosto do quiabo atingiu o paladar de Ângela. O quiabo da vovó.
Duas semanas antes, a mãe de Ângela, avó dos meninos, tinha falecido. A quinta habitante daquela casa estava fazendo uma falta gigante na dinâmica da família. Ângela tentava se manter forte pelos filhos, afinal já não bastava ser mãe solteira, mas Natália, Daniel e mesmo a pequena Aline haviam percebido a mudança brusca no comportamento de sua progenitora. Ao tentar esconder seu sofrimento, dona Ângela apenas sofria de maneira triplicada. Se continuasse naquele ritmo, não seria capaz de aguentar por muito tempo.
Foi aí que Natália decidiu intervir.
Fuçando em uma das gavetas da cozinha, encontrou, em meio aos papéis desorganizados da avó, aquela maravilhosa receita de quiabo. Era o prato preferido de sua mãe desde criancinha, ou pelo menos era isso que a Vó Nena sempre dizia. Natália e Daniel também gostavam muito da culinária da avó, então decidiram que seria sua missão replicar aquela receita e oferecê-la de presente à dona Ângela, como gratidão por ter sido tão forte por todos aqueles anos.
O quiabo tinha gosto de casa.
Ele tinha gosto de família, de infância, de memórias boas e distantes. Deslizava na língua meio áspero, meio azedo, trazendo de volta emoções enterradas e provocando sensações de conforto. Era quase como se a própria Vó Nena estivesse lá, abraçando cada um deles e dizendo que tudo ia ficar bem, como tinha feito tantas vezes antes quando ainda era viva.
— Está uma delícia — Ângela conseguiu dizer em meio às lágrimas. — Igualzinho ao da vovó.
A esse ponto, Natália também estava chorando. Daniel estava tentando disfarçar sua expressão, mas também estava bastante emocionado. Aline, não querendo se sentir de fora, logo começou a derramar lágrimas também.
A filha mais velha tinha se esforçado bastante para fazer a receita o mais próximo possível do que a avó fazia. Ela tinha observado a avó na cozinha tantas vezes que não tinha sido tão difícil replicar seus métodos e manias. No final das contas, tinha tudo valido a pena. As mãos de Natália mexeram o quiabo na panela, mas, ao experimentar sua obra prima depois de tudo, a garota começava a duvidar se não tinha sido a própria avó, em espírito, que tinha dado uma forcinha para tudo ficar com o gosto certo.
Naquele jantar em família, o primeiro decente desde que a Vó Nena tinha partido, os quatro entenderam um dos mais importantes fatos sobre a vida: nós somos a soma de todos aqueles que vieram antes de nós.
Enquanto eles vivessem, enquanto tivessem a memória da Vó Nena, enquanto soubessem preparar aquela deliciosa receita de quiabo, enquanto se recordassem de seus conselhos, de suas histórias, de suas broncas e de cada momento especial que tinham passado ao lado dela, a Vó Nena viveria.
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Receita ideal para o quiabo perfeito [CONTO]
Short StoryConto escrito para o Embaixador Secreto de 2018!!! Confira/acompanhe a brincadeira no link: https://www.wattpad.com/story/166703925-embaixador-secreto