Parte Dois

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"Ladies all across the world, listen up, we're looking for recruits"

Little Mix - Salute

Durante os últimos quatro anos, eu passei por diversos treinamentos: aprendi a atirar, pilotar aviões, lutar, dirigir, falar diversos idiomas e, principalmente, aprendi a conviver. Eu vivia num lugar com outras 40 mulheres, cada uma com sua história, com a sua personalidade e com o seu próprio jeito de ser. O segredo da convivência talvez esteja em aceitar o outro como ele é, sem tentar mudá-lo, ajeitá-lo ou moldá-lo ao seu gosto. Cada pessoa tem as suas singularidades e são elas que nos tornam tão únicos. Depois de longos anos em treinamento, eu finalmente entrei em uma equipe e comecei a fazer trabalhos de campo. Todos mais simples, sem muita dificuldade. Era sempre até você conseguir ganhar a confiança da Senhora. E eu queria conseguir as coisas por mérito e não porque eu era filha da antiga Senhora. Esse era um peso e um motivo de orgulho que eu carregaria, mas eu teria que ser importante por mim mesma em, ao menos, uma coisa em minha vida.

Eu fui colocada numa equipe com outras quatro mulheres: Roberta, Lota, Maria da Penha e Leila. Quase todas eram novas e tinham passado pelo treinamento comigo, menos Roberta, que já tinha quase quarenta anos de idade estava aqui há mais de dez anos.

Roberta é uma mulher trans, sua família nunca entendeu porque ela se sentia tão diferente dos seus outros dois irmãos e porque ela sempre pegava os vestidos da mãe escondidos para vestir. Foi difícil até mesmo para Roberta entender o que acontecia com ela, entender que dentro daquele exterior masculino, daquela "casca", havia sim uma mulher. E depois de muita negação, ela decidiu se aceitar como realmente era. Nessa época ela tinha 25 anos, largou a faculdade de engenharia faltando dois períodos para concluir e decidiu que queria cantar. Seu pai ficou louco, a espancou até suas próprias mãos sangrarem e depois de ver que nem mesmo a surra faria seu "filho voltar a ser o que era", ele a expulsou de casa. O sonho de cantar não deu certo e Roberta acabou se prostituindo por alguns meses, até que um dia, alguns clientes a espancaram novamente e a deixaram, ensanguentada e completamente machucada, numa esquina qualquer da Lapa, no Centro do Rio de Janeiro. Nesse dia as meninas do grupo a encontraram e a trouxeram para que ela fosse cuidada pela Ana e pela Nise, as médicas que trabalham aqui. Ela foi a primeira mulher trans a ser trazida e acolhida a optar por se juntar ao grupo. Depois de recuperada, Roberta fez a cirurgia e, finalmente, pode ser quem ela sempre foi por dentro. Então quando ela se olha no espelho e encara os longos cabelos loiros, os lábios sempre pintados de vermelho, ela enxerga quem ela sempre foi e agora pode, realmente, ser. E por isso seu nome é Roberta, em homenagem a Roberta Close, uma das primeiras mulheres trans brasileiras a ganhar notoriedade.

Já Lota teve problemas em casa a partir do dia em que se assumiu homossexual. Ela era bem baixinha, tinha o cabelo castanho escuro cortado curtinho, estilo "joãozinho", como as pessoas gostavam de perturbá-la. Ela não era muito de maquiagem ou roupas extravagantes, ela estava sempre bem sóbria, na dela, sem chamar muita atenção. Como sempre se acostumou a fazer. Seus pais, bem religiosos, não aceitavam a orientação sexual da filha e diziam que seria apenas uma fase, mas nunca foi. Lota sempre diz que nunca sentiu nenhum tipo de atração física ou sexual por homem nenhum. E que lembra detalhadamente a primeira vez que se viu interessada por uma garota, como ela se sentiu estranha, como ela achou que tinha algo errado com ela, que ela precisava de ajuda, que não poderia ser normal. E que também lembra muito bem do dia em que o seu interesse foi recíproco pela primeira vez. Que quando os lábios da outra menina tocaram os seus, ela sentiu que não tinha como haver algo errado com ela, porque ela se sentia bem demais, ela finalmente se sentia compreendida. E no dia em que ela estava andando de mãos dadas com a sua namorada e que alguns idiotas se sentiram no direito de falar gracinhas sobre elas, se sentiu impotente e agora se sente arrependida. Porque se ela não tivesse revidado as ofensas, sua namorada ainda poderia estar viva e ela não teria ido parar no hospital quase entre a vida e a morte. Então quando ela soube que tinha a chance de participar de um grupo que visava proteger todas as mulheres, independente de suas orientações sexuais, independente do que elas faziam com o seu corpo, sentiu que era isso que ela tinha que fazer, que ela precisava fazer pela Anna. E quando teve que escolher seu novo nome, ela escolheu Lota, em homenagem a grande arquiteta, urbanista e paisagista autoditada Lota de Macedo, que durante a ditadura militar, não teve medo de assumir seu amor por outra mulher.

SaluteWhere stories live. Discover now