Parte Única

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Ano novo, vida nova.

Quem dera fosse verdade que a virada do ano fosse mesmo um portal mágico, você leva o que quer, deixa tudo de ruim para trás e entra num mundo onde tudo é possível. Um recomeço. Um renascimento.

Muito engraçado! Tão engraçado que dava até vontade de chorar!

Porque se existia uma pessoa com experiências ruins para serem abandonadas, a seta em neon estava apontada para mim.

Minha lista de desejos para o ano que começava? Trabalhar, trabalhar e não perder tempo sofrendo ou sentindo saudades. Bem que eu gostaria de incluir outro item nessa lista: cumprir uma promessa feita no ano que terminava.

— Me promete, Marina... — Os dedos frágeis não tinham força para apertar minhas mãos, mas o fervor no olhar cansado era urgente, desesperado. — Você precisa esquecer... promete que você vai se abrir pro amor... pra novas possibilidades...

— Eu prometo, mãe. — Foi minha resposta engasgada de lágrimas, mesmo sem a convicção de ser capaz de atender.

Ao ouvir meu juramento, ela fechou os olhos para nunca mais os abrir, e perdi minha única família, ficando sozinha no mundo.

Infelizmente, a mágoa de tempos atrás machucava com a mesma intensidade, e eu ainda não estava pronta para atender ao último pedido da minha mãe. 

E por ironia do destino, poucos meses depois, pela primeira vez em oito anos, eu me encontrava na presença do culpado de tudo. Do 'menino' que tinha me deixado marcas permanentes e profundas.

Lembranças mais antigas chegaram, sem convite.

— O que você está procurando?

De quatro, no meio do gramado, olhei o par de tênis que devia ter custado mais que todo o dinheiro que eu tinha visto nos meus quinze anos de vida. Única informação que eu precisava. Ele era um dos hóspedes que chegaram naquela manhã, e eu já tinha sido avisada, inúmeras vezes, enfática e exaustivamente, a só interagir com os patrões e convidados quando eu ia ajudar minha mãe em algum serviço na sede da fazenda. Ainda mais depois que meu corpo ganhou contornos de mulher e os olhares masculinos a minha volta passaram a carregar um ar de cobiça.

— Nada. — Eu virei de lado e continuei tateando pelo chão.

O meu tom seco não o fez sair correndo, como foi minha intenção, e ele se jogou de quatro ao meu lado.

— Se você me disser como é esse 'nada', eu te ajudo.

— Escuta. — Eu levantei os olhos, dando de cara com um menino não muito mais velho que eu, os cabelos castanhos bagunçados e um sorriso bonito. Os olhos azulados por trás dos óculos eram gentis e sinceros, o que não afastou meu tom irritadiço. Se alguém nos visse conversando, a bronca ia ser toda em cima de mim, claro. — Você não tem nada melhor pra fazer com os seus amigos?

— Eles foram andar a cavalo. — Ele desviou o olhar por cima do meu ombro. — Eu tenho medo.

E ele tinha vindo se esconder logo no meu lugar preferido. Debaixo da árvore alta e de tronco grosso, afastada o suficiente para me deixar fora do caminho e da visão das pessoas na casa, e perto o bastante para ouvir se minha mãe me chamasse. Onde eu sentava para ler e sonhar que um dia a minha vida também seria uma grande aventura, digna de encher as páginas de um livro.

O leve rubor que cobriu o rosto envergonhado com a confissão da fraqueza foi o que me desarmou.

— Um colar — eu me rendi, com um suspiro. — Foi a minha avó que me deu antes de morrer. Um cordão com uma pérola.

Ano Novo, Vida NovaOnde histórias criam vida. Descubra agora