Dougie
Quando alguém próximo de você morre, você muda.
Um dia quando olhar para trás e perceber como sua vida era e como sua vida está, você se dá conta de que mudou e nem percebeu, que as coisas a partir da perda nunca mais foram as mesmas, você nunca mais foi o mesmo e nunca voltará a ser. É como se uma parte de você fosse arrancada e uma nova peça com encaixe diferente fosse colocado.
Existem também alguns estágios que você passa sem nem se dar conta de que isso está acontecendo. São formas que sua mente usa para ajudar no enfrentamento da morte que acredite ou não: nunca vai ser completamente aceita por você. E existe mais uma coisa que é muito interessante sobre a morte. Não importa se você sabe que a morte existe e inevitavelmente vai chegar para cada um de nós, quando alguém próximo de você morre é impossível não iniciar dentro de si uma série de questionamentos sobre vida.Lembro que quando minha mãe morreu eu senti uma absurda tristeza. Uma parte de mim morreu com ela e eu não via mais sentido em viver, tanto que de uma forma inconsciente eu quase dei fim a minha vida. Lembro que quando fui morar com Paul fui encaminhado à terapia e fiz isso por um grande período de tempo. Conforme eu ia melhorando eu ia me apegando a ideia de tudo o que minha mãe tinha feito em sua vida. Ela havia casado, criado família e por alguns anos de sua existência ela havia sido muito feliz e isso me conformou de alguma forma. Mas lembro também que conforme eu ia começando a melhorar a culpa surgia em mim de forma absurda, afinal, minha mãe tinha morrido eu não deveria ter o direito de ser feliz novamente.Isso durou pouco, e logo e pois disso veio a saudade. Saudade de quem ela era, de quem nós éramos juntos, saudade do seu sorriso. No lugar da enorme tristeza ficou a saudade que quando ficava muito me causava uma dor que era sempre forte e aguda, mas que também não demorava muito a passar. Era como se a peça de encaixe tivesse soltado e machucado, mas aos poucos ela ia voltando ao seu lugar.
Dentre todos os estágios que passei com a morte da minha mãe, negação foi o maior e mais duradouro estágio que vivi. Foram três longos e devastadores meses até que eu finalmente entendesse que ela havia partido e nada do que eu fizesse poderia mudar isso. Mas não havia acontecido isso com Paul, com ele estava sendo muito minha mãe eu esperava e sabia que ia acontecer e quando aconteceu, eu não consegui ele foi de repente. Abrupto. Repentino. Injusto. Não houve negação da minha parte ao receber a notícia da sua morte, tudo o que eu sentia era uma enorme quantidade de raiva. Raiva porque eu não conseguia evitar comparar e pensar em tudo o que ele ainda tinha pra viver e fazer. Raiva por seus planos que foram interrompidos. Raiva por sua morte tão prematura. A casa era silenciosa agora, exceto pelos momentos em que o choro de Julie preenchiam todas as lacunas vazias do silêncio gritante. A raiva estava ali, me deixando com dificuldade de pensar, dormir,sentir, de saber o que fazer. A grande realidade era que eu estava sem rumo, mas ao mesmo tempo tentando me fazer um rumo para ajudar aqueles ao meu redor que estavam precisando de mim.
Ir para a escola estava sendo um martírio. A mesa não era a mesma e não era a falta de Paul que imperava ali, ele já não pertencia àquele lugar a séculos. A falta de Vanessa e Julie sim. A primeira se negava a ir à escola, falar com alguém e até mesmo sair do seu quarto. Já havia ido inúmeras vezes até a sua casa mas fui ignorado em todas elas. Ela não queria minha ajuda. Julie estava em casa por estar de atestado médico devido a cirurgia. Sem as duas, a mesa ficava silenciosa e estranhamente vazia e esquisita.
Estar em casa também não era mais a mesma coisa e ali sim, a falta de Paul era sufocante e foram motivos como aquele que eu havia deixado minha casa quando minha mãe morreu. Eu não acreditava que eu seria capaz de lidar com a dor e o caos que minha vida tinha se tornado dentro de um lugar tão cheio de boas lembranças e por alguns milésimos de segundos quando eu recebi a notícia da morte de Paul eu pensei em fazer a mesma coisa, mas dessa vez eu não estava sozinho. Eu não poderia deixar Julie sozinha ali. Não pelo sentimento que eu mantinha por ela, mas pelo amor que eu mantinha por Paul. Ele não havia me deixado sozinho, então por amor à ele eu não a deixaria sozinha, pois sei que ele iria querer que alguém cuidasse dela. Pela primeira vez eu via as coisas de uma forma bem diferente e me sentia bem culpado pelo que eu havia feito meus amigos passarem três anos atrás. E dessa vez eu havia me prometido que não iria fugir, eu iria enfrentar meus medos e angústias, mesmo que isso significasse entrar todos os dias naquele apartamento e viver como se as coisas pudessem voltar ao normal, como se a vida pudesse seguir seu curso, porque ela seguiria. Logo logo as pessoas parariam de perguntar sobre Paul e sobre como os mais próximos dele estariam se sentindo. As pessoas esqueceriam de sua morte e passariam a agir como se devêssemos esquecer também. Aquele era o momento em que a dor se tornava mais aguda, quando todos pareciam esquecer menos você.
O barulho de um algo caindo no chão tirou minha mente de seus devaneios. O barulho havia vindo do quarto ao lado e eu levantei depressa para ver se Julie estava bem. Bati na porta do seu quarto duas vezes e como não ouvi resposta abri, apenas para encontrar o mesmo vazio e a porta do banheiro fechada e a luz acesa.
-Julie, tá tudo bem? – Chamei batendo na porta. O barulho do chuveiro podia ser ouvido e por cima dele consegui ouvir a voz de Julie.
-Preciso de ajuda, mas eu estou pelada. – Rodei meus olhos pelo quarto para encontrar a porta de seu guarda-roupa aberta. Peguei ali uma toalha e rodei a maçaneta da porta fechando os olhos antes de entrar. Eu conhecia bem aquele banheiro, afinal, ele havia sido meu por três anos, então não foi difícil tatear as cegas a parede e chegar até o Box, desligar o chuveiro e estender a toalha pra Julie.
-Pode abrir os olhos – Sua voz estava baixa e constrangida e quando eu a encarei uma enorme e absurda onda de sentimentos tomou conta de mim. Era a primeira vez que nos encarávamos de verdade desde que havíamos nos beijado e aquela simples lembrança fez meu rosto esquentar.
-Tá tudo bem? – agradeci quando ela desviou o olhar, pois eu pude continuar olhando pra ela sem me sentir envergonhado.
-Eu acabei escorregando por estar com um pé só – Ela falou olhando para baixo apertando a toalha ao corpo.
-Vem cá – Me abaixei e passei meus braços por seu corpo antes de ergue-la.
-Minha bunda ficou de fora – Ela falou constrangida e eu acabei soltando uma risada.
-Pode ficar tranquila que eu não estou vendo. – Tentei colocar graça na voz e não transparecer o quanto eu também estava sem graça. Só agora minha mente trabalhava sobre a questão de como seriam as coisas entre nós dali pra frente.
-Você tá com dor? Acha que machucou alguma coisa? Quer ir ao hospital? – Perguntei depois de coloca-la sobre sua cama e observei ela se prender mais ainda a toalha.
-Tô, mas é só minha perna. Tá doendo demais, mas eu acho que é porque deixei de tomar duas doses do analgésico e do anti-inflamatório por estar dormindo. Eu tomei agora e daqui a pouco deve começar a fazer efeito, se não fizer eu vou ao hospital. – Ela terminou a frase olhando em meus olhos e eu me senti um pouco mais aliviado, embora estranho. Muitas coisas estavam em aberto entre nós. Droga.
-Onde eu pego uma roupa pra você?
-Tem uma peça que eu separei ali no banheiro. – Ela jogou os cabelos pra trás e eu fui até o local buscar a roupa.
-Quer ajuda? Eu fecho o olho. Juro que não quero me aproveitar do seu corpo. – A frase "seu irmão me mataria por isso" subiu na minha garganta mas eu me obriguei a engoli-la a seco. Paul não poderia me matar porque ele estava morto.
-Eu nunca pensaria isso de você. Pelo menos não mais – Ela tentou ser irônica – E eu preciso de ajuda sim. – Ela mordeu os lábios. – Me ajude a levantar - Acenei positivamente com a cabeça, estendendo à ela meus braços para que pudesse se apoiar. Me virei de costas no momento em que ela ficou em pé e logo em seguida senti a toalha cair aos meus pés. Julie me usava de apoio para que pudesse vestir suas roupas e eu me peguei pensando que nunca nos imaginei vivendo essa situação.
- Pode se virar – Fiz o que ela pediu e percebi que estávamos muito próximos, mas nada parecia estranho. A proximidade me deu a oportunidade de olhar melhor seu rosto emagrecido, ver suas bolsas embaixo dos olhos, seu sorriso que não tomava mais seu rosto todo e agora era triste. Senti vontade de afagar seu rosto, beijar sua pele e abraça-la com toda força do mundo apenas para tentar fazer com que aquele olhar desse lugar às iris brilhosas que eu sempre admirava. Tudo nela exalava sensibilidade, mas ainda assim ela me parecia firme. Firme de uma forma que eu nunca a tinha visto antes. E absurdamente linda, o que já era seu normal. – Pode me ajudar a ir pra sala? Preciso de um lugar que não seja meu quarto. E pelo silêncio daquela TV, acredito que você precisa do mesmo. – Ela quebrou o silêncio pegando em meu braço pra que pudesse se apoiar em mim mas eu novamente passei meus braços por seu corpo erguendo-a do chão. - Não precisa ser assim - Ela revirou os olhos e reclamou que estava com a perna quebrada e não aleijada. Apenas ignorei, pois sabia que no fundo isso fazia com que ela se sentisse segura e isso era o que eu mais queria. Depois de nos posicionarmos no sofá veio o silêncio. Eu não sabia o que falar ou se deveria falar,mas pra minha surpresa ela que deu continuidade aos assuntos. -TV ou netflix?
-Você ainda pergunta? – Ela tentou sorrir de lado e então conectamos a Tv ao Netflix e optamos por ver Friends. Decidimos também pedir algo de comer e optamos por comida japonesa, já que ela não podia comer nada gorduroso por causa da perna.
Comemos e ficamos em silêncio e embora olhássemos para a TV, nenhum de nós realmente prestava a atenção ao que estava se passando ali. A mente dela assim como a minha parecia a milhas de distancia daquele apartamento pequeno. Minha mente agora vagava não só na nossa perda, mas nas nossas questões em aberto. Apenas lembrar que eu havia finalmente dito a ela tudo o que eu sentia e que ela não havia sido muito receptiva a isso me deixava extremamente sem graça e eu sentia meu rosto esquentar por estar a meio metro de distância e saber que ela sabia exatamente como eu me sentia.
-Como vão ser as coisas daqui pra frente? Como funciona a vida agora? - Ela perguntou depois de um longo período de silêncio. Embora eu já houvesse passado por aquilo todo aquele processo era novo pra mim,mas tentei a me apegar a forma como eu havia lidado com aquilo antes,para ver de se alguma forma eu conseguiria ajuda-la.
- Primeiro você vai tentar se prender a todas as formas e possibilidades de que isso realmente não está acontecendo. – Eu encarei a foto de Paul do outro lado da sala e foquei no que eu senti quando minha mãe morreu, não na raiva que eu sentia ao encarar o seu sorriso naquela foto. - Você vai ter a sensação de que você está em um filme ou em uma brincadeira de muito mau gosto e que alguém realmente tá tentando gozar com a sua cara. E então vai chegar um momento em que você vai perceber que não é um filme ou uma brincadeira, que isso realmente está acontecendo e ... e isso vai acabar com você. – Eu me virei para olhá-la e inevitavelmente me lembrei de três anos atrás, quando eu me toquei que se eu tivesse continuado da forma que eu estava minha vida iria acabar. – Você vai tentar arrumar maneiras de desacreditar ou fugir da ideia de que isso está acontecendo, mas chega um momento em que se torna inevitável e a dor é tão forte, tão forte que a sensação de que você tem é de que você não consegue respirar e isso causa tanta raiva. – Senti minha voz embargar e engoli a vontade de chorar que subia pela garganta. - A dor e a raiva parecem ser uma só dentro de você e a sensação é que parece que isso nunca vai acabar e de certa forma nunca acaba. Ela sempre vai estar aqui, mas disfarçada em forma de saudades.- Coloquei a mão em meu peito - Você vai perceber que se a pessoa estivesse viva ela não iria querer isso pra você, e a sua única alternativa vai ser se apegar a essa ideia com todas as suas forças e todos os dias pra continuar.É um processo diário,vão existir dias bons e dias ruins e as coisas vão ser bem esquisitas por um bom tempo e eu não sei o que acontece depois, porque quando eu achei que eu estava chegando nessa fase, parece que a vida apertou reset e eu to vivendo tudo de novo. Mas ao contrário do que os outros dizem, os primeiros dias não são os mais difíceis, eles são os mais fáceis. A pior parte de todas é quando parece que todo mundo já superou e você é a única pessoa que continua a viver aquilo.– Ela me encarava séria e seus olhos estavam marejados.
-Nós vamos conseguir passar por isso, certo? – A pergunta dela soou como um apelo e eu segurei sua mão. Um sorriso surgiu em meu rosto pelo uso da palavra nós.
-Sim, nós vamos. – Ela mordeu os lábios em seguida.
-Como você está, Dougie? – Seu olhar era tão sincero e preocupado que por um momento quase esqueci de responder a sua pergunta e fiquei ali, parado e encarando-a.
-Uma merda – Eu sorri e ela piscou lentamente. Eu não queria falar de mim, eu já havia passado por aquilo antes e sabia que poderia lidar com tudo o que estava acontecendo, contanto que eu fizesse a raiva passar. Mas pra ela era novo e eu sabia como era esse sentimento – Você tomou os analgésicos que horas? Você precisa ficar de olho pra tomar certinho e você tomou com o estômago vazio? Faz mal – Ela acenou com a cabeça.
-Você não precisa cuidar de mim. – Ela me olhou de uma forma diferente. – Eu estou bem. Eu estava perguntando de você.
-Alguém precisa fazer isso, então deixa fazer. – Fui sincero em minha resposta e dei de ombros.
-Alguém também precisa cuidar de você, então me deixa fazer isso. – Sua frase aqueceu meu coração de uma forma absurda e eu não consegui evitar sorrir,principalmente depois de ver seu rosto ficar vermelho. - Nós cuidaremos um do outro, eu sei que Paul iria gostar disso. – Ela voltou a olhar pra frente. – Só por favor, não some.
-Eu não vou. – Ela me encarou quando eu falei talvez pra ter certeza de que eu estava sendo sincero – Eu prometo. – Apertei mais ainda sua mão que estava entrelaçada à minha. – Eu não vou a lugar nenhum. - Ela acenou com a cabeça.
-Sabe de uma coisa? Eu nunca soube como vocês se conheceram, como aconteceu isso?
- Nós nos conhecemos na escola quando ele me defendeu de um garoto do ano dele que queria me bater porque a menina que ele namorava terminou com ele e ele acreditava que eu era o motivo – Sorri lembrando. –O garoto era atleta, todo parrudo e veio pra cima de mim depois da aula com tudo querendo me enfiar a porrada e eu nem sabia o que tinha acontecido. O Paul achou covardia esse negócio de bater primeiro e conversar depois e se colocou no meio me defendendo, mesmo não me conhecendo. Acho que ele achou injusta a desvantagem de tamanho. Eu era bem mais magro do que eu sou hoje em dia e não sabia nem bater em uma mosca, coisa que eu ainda não sei. O cara conhecia Paul a bastante tempo então resolveu deixar a história de lado, daí em diante nos tornamos amigos. Ele não saia da minha casa, completamente morava lá – Fechei os olhos com as lembranças não só dele. – ele sempre pedia a minha mãe pra inventar alguma coisa na cozinha, mas ela era péssima em qualquer coisa que envolvesse o fogão, então sempre terminávamos o dia comendo pizza e vendo algum programa besta da Discovery. As vezes ela acertava fazer biscoitos, mas eles sempre saiam queimados. – Sorri de verdade com a lembrança que já estava quase esquecida na minha mente. Julie me encarava atenta e isso fazia meu rosto esquentar – as vezes nós íamos até a outra cidade visitar a tia Rachel, ela sempre nos dava camisinhas. Acho que ela era um pouco responsável pelo lado puta dele. – Julie gargalhou com a informação. –Quando minha mãe ficou doente, o Paul meio que se mudou de verdade lá pra casa pra me ajudar com ela – Eu senti minha garganta começar a se fechar ao tocar no assunto.
-Foi câncer né? - Ela perguntou delicada e eu voltei a olhar pra cima sentindo a raiva dar lugar a dor, eu particularmente estava sentindo mais falta da minha mãe nos últimos dias.
- Sim. Começou no útero e eles fizeram uma histerectomia e ficou tudo bem, mas um tempo depois ela começou a se sentir mal de novo e quando foi fazer exames descobriram que o câncer tinha dado metástase e alcançado o fígado e alguns outros órgãos. Ela já estava entrando em estágio terminal quando descobrimos, mas ainda assim tentamos de tudo para salva-l. Quando percebemos que não tinha mais jeito eu tentei aproveitar o máximo possível de tempo com ela. – Pisquei rápido tentando espalhar as lágrimas que começavam a se acumular em meus olhos – Ela amava ir pra estação de metrô e ficar sentada olhando as pessoas passarem e imaginando sobre suas vidas. – Eu ri e Julie também. – Ela era uma pessoa estranha. Mãe, não me ouça falar isso! – Eu disse olhando pra cima – Mas ela era maravilhosa. Uma ótima mãe, com todos os defeitos e qualidades de qualquer mãe. Eu larguei a escola pra poder cuidar dela porque eu não queria deixá-la com ninguém, porque eu sabia que ninguém ia cuidar dela que nem eu. Então o Paul veio me ajudar, porque as coisas foram ficando mais difíceis. Minha mãe perdeu o cabelo, e o Paul e eu raspamos a cabeça pra ela não ficar tão triste. No final ela já não andava mais, mal falava, ela não era mais a minha mãe, ela era só a doença. – Foi impossível conter a lagrima de saudade que escorreu pelo meu peito. Há muito tempo eu nem falava sobre ela e só agora eu me dava conta do quanto eu havia sentido falta disso.
- Por isso que você não quis voltar pra casa?
-Sim. Era demais pra minha cabeça. Ela morreu do meu lado enquanto eu segurava sua mão. Os médicos me tiraram do quarto para uma tentativa de ressuscitação, mas não deu certo. Quando eles vieram me dar a notícia oficialmente eu surtei. Eu sabia que ela tinha morrido, eu estava segurando sua mão, eu vi sua ultima respiração, seu corpo ficar imóvel, a maquina parar de registrar batimentos, mas eu não conseguia acreditar que aquilo realmente estava acontecendo, sabe? Eu perdi completamente meu chão, mesmo já sabendo que aquilo aconteceria. Eu não quis voltar pra escola e nem pra casa e sumi. Eu fiquei mais de um mês fora, indo de bar em bar, dormindo no carro ou na rua, bebendo, fumando e me drogando até que eu fui parar no hospital em coma alcoólico. Eu lembro que quando eu acordei no hospital a primeira coisa que eu vi foi Paul e ele estava com uma cara de mal tão grande que eu não consegui falar nada. Eu sabia que eu estava errado, que eu poderia ter sido preso ou morrido em uma das minhas inconsequências e que ele iria brigar muito comigo, mas depois de algum tempo só me olhando ele me abraçou e começou a chorar e naquele momento eu pensei que não era aquilo que minha mãe iria querer pra mim. Mas eu também não queria voltar pra casa, então o Paul alugou esse apartamento e me trouxe pra morar com ele. Seu irmão foi como um irmão pra mim, ele me ajudou e esteve do meu lado sempre.
- O Paul sempre teve esse dom. Ele sempre cuidou de mim. – Ela fez um barulho com a boca e seu queixo ficou rígido –Eu vou sentir muita falta disso. - Ela voltou a olhar a TV.
-Julie, eu sei que esse apartamento era do Paul e que eu morava com ele e quando você veio pra cá você veio pra morar com ele e não com o melhor amigo mala, então eu vou começar a procurar algum lugar pra mim.
-Do que você está falando? – Ela perguntou séria. Parecendo não entender o que eu havia dito.
- Eu morava com o Paul, Julie. Ele não está mais aqui. É hora de me mudar. - Eu tentei entender a expressão que se apossou do seu rosto.
-Eu não vou a lugar nenhum, lembra? Você acabou de me prometer. – Ela falou como se fosse uma coisa óbvia –Essa é sua casa.
- Você tem certeza disso? Mudar pra mim não seria um problema Julie. Não precisa ficar com remorso e achar que está me expulsando ou me deixando sem teto.
- Eu quero que você fique Dougie.– Ela falou firme – Você se mudar não é uma hipótese a ser calculada. Essa é a sua casa, assim como também é a minha e o Paul não estar mais aqui não muda nada disso.
-Ok. – Eu concordei com a cabeça e a campainha tocou. Recebemos, comemos e conversamos por horas a fio sobre coisas aleatórias. Eu sabia que Julie não queria me deixar sozinho, assim como eu não queria deixa-la sozinha, mas seus olhos estavam parecendo pesados e sua fala já estava mais lenta.-Você quer ir pro seu quarto? – Perguntei e ela acenou negativamente com a cabeça.
-Não, quero ficar aqui. Na realidade eu não queria nem dormir – Ela se acomodou mais no sofá que estava aberto, fechando os olhos por alguns instantes mas reabrindo-os logo em seguida.
-Você precisa dormir, você está machucada precisa melhorar logo. – Ela piscou e seus olhos não se abriram dessa vez.
-Nós dois estamos Dougie e nós dois precisamos – Ela não disse mais nada, apenas se virou de lado se acomodando e caindo no sono.
Eu desliguei a luz e fiquei ali no escuro pensando em todas as lembranças que eu havia despertado com aquela conversa e no meio de pensamentos, emoções e sensações eu finalmente também apaguei.