No oitavo dia, minhas pernas doíam e minha garganta queimava. Eu me movia devagar através
de moitas densas ao lado da estrada, empurrando os ramos para trás com um galho quebradoque estava usando como bengala. Não parava de dizer a mim mesma que chegaria a Califia. Não
parava de dizer a mim mesma que estaria a salvo em breve, que, desde que ficasse dentro do
mato, fora de vista, as gangues não me encontrariam. Mas minha garrafa de água continuava
totalmente seca havia dias. A fadiga estava me perseguindo. Em um momento eu estava suando,
e no outro, tremendo de frio.
Fui para o oeste, como a professora Florence havia instruído, na direção do sol poente. À
noite, quando a temperatura caía, eu dormia dentro dos armários de casas abandonadas ou em
garagens, ao lado das carcaças de carros antigos. Quando encontrava um lugar que considerava
seguro, eu me sentava por algum tempo, comendo as maçãs que a professora havia colocado na
minha sacola e pensando na Escola. Não parava de repassar aquela noite na cabeça, imaginando
se poderia ter sido diferente — se poderia ter salvado Pip também. Talvez eu devesse ter
corrido o risco. Talvez devesse tê-la acordado. Talvez devesse ter ao menos tentado. Meu peito
elevava-se com os soluços quando a visualizava amarrada a uma daquelas camas, sozinha e com
medo, perguntando-se por que eu a havia abandonado.
Não demorou muito para que eu ficasse sem comida. As despensas das casas estavam vazias,
saqueadas por sobreviventes da praga. Tentei catar frutas silvestres, mas alguns punhados não
eram o bastante para aplacar a queimação no meu estômago. Fiquei cada vez mais fraca, os
passos mais lentos, até que ficou difícil andar mais do que uns dois quilômetros sem ter de parar
para descansar. Eu me sentava na base das árvores, com suas raízes retorcidas me segurando, e
observava os cervos pularem pela grama alta.
Às vezes, logo antes do sol se pôr, eu tirava minhas coisas da mochila para observá-las. Eu
não parava de voltar minha atenção para aquela pulseira, tão pequena que mal cabia ao redor de
três dos meus dedos.
Como todas as garotas na Escola, eu era órfã. Chegara lá quando tinha 5 anos de idade,
depois que minha mãe foi levada pela praga. Eu nunca conhecera meu pai. Aqueles itens eram
as únicas coisas que haviam sobrado do meu passado, com a exceção de algumas lembranças —
sensações, na verdade — de uma mãe penteando os nós do meu cabelo molhado ou o cheiro do
seu perfume enquanto me embalava para dormir. Eu havia lido uma vez sobre pessoas que
sofreram amputações, e sobre como elas sentiam dores onde os braços ou pernas costumavam
estar. Membros fantasmas, era como eram chamados. Sempre achei que essa era a melhor
maneira de descrever meus sentimentos em relação à minha mãe. Ela agora era apenas uma dor
que eu sentia por alguma coisa que eu tivera e perdera.
Continuei em frente, colocando cada vez mais do meu peso sobre a bengala. Ao longe, vi uma
minúscula piscina de plástico onde a água da chuva havia se acumulado, um oásis turquesa
cintilante rodeado de mato. Pisquei duas vezes, imaginando se não estaria alucinando com o
calor do dia. Corri até ela e caí, com os lábios tocando a água fria. Pensei em quanto tempo ela
estivera ali e se era limpa o bastante para o consumo, mas proporcionava uma sensação tão boa
em minha boca seca que não parei até que meu estômago estivesse dolorosamente cheio.
Quando me sentei, percebi um reflexo na superfície da água. Ali, a alguns metros de distância,
havia uma casa, com uma luz acesa do lado de dentro.
Caminhei na direção da luz brilhante enquanto o sol beijava o topo das árvores. Não sabia
quem estava lá ou se poderiam me ajudar, mas precisava ao menos descobrir.
Um playground de madeira havia quase desabado no jardim. Videiras se enroscavam emtorno das correntes enferrujadas de um balanço, puxando-as na direção da terra. Manobrando
por baixo do escorregador quebrado, eu me aproximei de uma janela entreaberta e espiei para
dentro. A sala de estar era pequena, com apenas um sofá apodrecido e algumas fotografias
rachadas penduradas na parede. Uma silhueta encapuzada estava curvada sobre uma fogueira,
cozinhando.
A fumaça subia em espirais até o teto e se espalhava para fora, provocando minhas narinas
com a promessa de um jantar à base de carne. A silhueta apanhou uma pata de coelho,
mordendo-a febrilmente no osso. Minha boca se encheu de saliva só de imaginar quão delicioso
aquilo estaria.
Eu já vira um Perdido antes, passando por perto do muro na seção que se descortinava da
janela de canto da biblioteca. Perdidos não faziam parte de gangues, não faziam parte do regime
do Rei; em vez disso, eram autônomos que viviam na selva. Haviam nos dito que os Perdidos
eram perigosos, mas este tinha a envergadura leve de uma mulher, o que diminuiu meu medo.
— Olá! — gritei pela janela. — Preciso de ajuda. Por favor!
A silhueta se levantou de sobressalto e encostou-se na parede, apontando a faca no ar.
— Mostre-se! — O capuz era tão grande que tapava seu rosto, mas os lábios delicados,
gordurosos por causa da carne, estavam visíveis à luz da fogueira.
— Está bem, por favor — falei, erguendo as mãos à minha frente. Empurrei a janela, e as
dobradiças enferrujadas se quebraram, quase fazendo com que ela se espatifasse dentro do
aposento. Icei-me para dentro, mantendo as mãos onde ela podia vê-las. — Minha comida
acabou.
Ela manteve a faca esticada na minha direção. Trajava uma calça verde-escura como a que as
funcionárias do governo usavam, e a camisa preta com capuz era grande demais. Eu não
conseguia ver seus olhos.
Então, enquanto eu baixava as mãos ao lado do corpo, vi a mochila aberta com o uniforme da
Escola dentro. O brasão da Nova América brilhava, vermelho e azul. Dei um passo para trás,
absorvendo lentamente os coturnos pretos, a silhueta alta, a pinta elegante acima do lábio.
— Arden?
Ela puxou o capuz para trás. O cabelo preto e curto estava coberto de sujeira, e a pele branca
estava queimada de sol, com o arco do nariz descascando em algumas partes.
Joguei os braços em volta dela, segurando-a firmemente, como se ela fosse a única coisa me
impedindo de cair no chão. Respirei fundo, sem me incomodar por nós duas estarmos fedendo a
roupas ensopadas de suor.
Arden estava aqui. Viva. Comigo.
— O que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou ela, empurrando-me para longe.
— Como chegou aqui? — Seu rosto se contorceu de raiva, e eu me lembrei, de repente, que ela
me odiava.
Sentei-me no chão da sala, surpresa.
— Eu fugi. Você tinha razão. Eu também as vi. As garotas. Naquele quarto de cimento.
Arden andava de um lado para o outro na frente do fogo, com a faca apertada entre os dedos.
— Segui a placa que dizia “oitenta”... — continuei, mas deixei a frase morrer, percebendo
que ela devia ter feito a mesma coisa. — Califia não pode estar a mais de uma semana de
distância, vamos encontrar a ponte vermelha em breve...Arden batia com a parte de trás da faca contra a perna enquanto andava.
— Você não pode ficar comigo. Não posso deixar, sinto muito, mas você simplesmente vai ter
de...
— Não! — Pensei apenas nos ratos gigantes que corriam por cima das minhas pernas à noite
e em minha pífia tentativa de caçar coelhos. — Não pode fazer isso, Arden. Você não me poria
para fora.
Arden arrastou a faca pela lareira de tijolos, produzindo um som de arranhado que fez minha
coluna enrijecer.
— Isso não é um jogo, Eva. Não são feriazinhas que você está tirando da escola. — Ela
apontou para fora da janela. — Há homens e cachorros e todo tipo de animal selvagem lá fora, e
todos querem nos matar. Você não vai conseguir me acompanhar. Eu... eu não posso correr esse
risco. É melhor se ficarmos por conta própria.
Sentei-me sobre minhas mãos trêmulas, com as palmas afundando no tapete bolorento, e a
crueldade de Arden me deixara sóbria. Mesmo se eu encontrasse uma aluna da segunda série na
selva, e sua perna estivesse quebrada ao meio, eu não a deixaria lá; não conseguiria. Era uma
sentença de morte.
— Sei que não é um jogo. É por isso que devemos ficar juntas. — Eu precisava de Arden,
mas não conseguia pensar direito em por que ela precisaria de mim. Mesmo assim, vasculhei
minha mente tentando apelar para aquela parte fria e darwiniana dela. — Eu posso ajudá-la.
Arden afundou-se no sofá velho, que tinha as almofadas partidas em alguns lugares por molas
retorcidas e enferrujadas.
— E como você pode me ajudar? — Ela puxou um besouro morto das pontas emaranhadas do
cabelo e o lançou no fogo. Ele emitiu um estalido alto.
— Eu sou esperta. Posso ajudar com mapas e bússolas. E vai ser prático ter uma pessoa a
mais, para ficar de vigia.
Arden soltou todo o ar em seus pulmões.
— Não há nenhum mapa ou bússola, Eva. E você é culta — corrigiu ela, erguendo um dedo
no ar. — Isso não vale de nada aqui. Você sabe pescar? Sabe caçar? Mataria alguém se fosse eu
contra eles?
Engoli em seco, sabendo qual era a resposta: não. É claro que não. Eu nunca matara sequer
uma lesma. Havia contado à professora sobre as garotas que colocavam sal nas lesmas só para
vê-las se contorcendo. Mas eu queria provar a Arden que cada um daqueles anos que eu passara
na biblioteca enquanto ela arremessava ferraduras no gramado havia valido a pena.
— A diretora me deu a Medalha da Conquista...
Arden jogou a cabeça para trás e riu.
— Você é engraçada. Mas tenho me virado bem sozinha. Você, no entanto...
Olhei para baixo, enxergando-me através dos olhos dela. Meu vestido da Escola fora rasgado
por um galho de árvore. As palmas das minhas mãos estavam incrustadas de sangue, e meus
braços estavam nus, apesar de ser uma noite fria de primavera. Eu me sentia fraca, mais fraca
do que jamais estivera na Escola, sem comida e sem água e nenhum sustento pelo qual esperar.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Você não entende. Você tem pais, um lugar para ir. Não sabe como é estar completamente
sozinha aqui fora.Apoiei o rosto em minhas mãos e chorei. Eu não queria apodrecer, sozinha, na floresta. Eu
não queria passar fome ou ser capturada por um homem. Eu não queria morrer.
Passou-se um bom minuto antes de eu perceber que Arden havia saído de seu lugar no sofá e
colocado outro pedaço de coelho no fogo.
— Não precisa ficar choramingando — disse ela, passando o espeto para mim.
Eu o devorei, deixando o suco escorrer pelo meu queixo, esquecendo meus modos uma vez na
vida.
— Não posso perder mais tempo. A essa altura, meus pais já devem ter ouvido que eu saí da
Escola... Devem estar procurando por mim — disse Arden quando eu finalmente terminei.
Senti o ímpeto de revirar os olhos, mas me contive. Mesmo agora, perdida na selva, Arden
estava se vangloriando de seus pais. Logo estaria me contando sobre a casa de quatro andares
na qual moravam juntos, sobre como ela dormia em uma cama king size, mesmo quando criança.
Como fora difícil dar adeus a tudo aquilo, mesmo que apenas por alguns anos. Ela sentia falta
das empregadas, dos jantares servidos em pratos de porcelana, dos pais, que a levavam a peças
de teatro e a deixavam recostar o queixo no beiral do camarote para ter uma visão melhor do
palco.
— Você pode ficar esta noite. Depois disso, veremos — avisou Arden e jogou um cobertor
cinza esfarrapado para mim.
Enrolei-o em volta dos ombros enquanto o fogo diminuía para uma pilha de cinzas ardentes.
— Obrigada.
— Sem problemas. — Arden revirou-se em sua pilha de colchas dispostas no sofá e
circulando-a como um gigante ninho de passarinho. — Eu o encontrei em um esqueleto, alguns
quilômetros atrás. — Ela soltou uma risadinha.
Eu o joguei para longe dos ombros e recostei-me na quina da parede. Não me importava se
meus dentes batessem de frio como haviam feito todas as outras noites.
Sob a luz da lua crescente, eu podia ver fotos na parede. Uma família jovem estava posando
na frente da casa. Estavam sorrindo, com os braços em volta uns dos outros, tão ignorantes de
seu futuro quanto eu estava do meu.
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Eva
De TodoA guerra dos sexos está apenas começando... No futuro, uma praga mortal aniquilou a população da terra. Homens e mulheres seguem segregados. Os meninos são mandados para campos de trabalho forçado. As meninas, para Escolas onde aprendem uma profissã...